segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Aristotelismo: A Ciência da Alma como Problema

Aos 410 anos da Ratio Studiorum
e da morte de Pedro da Fonseca



O Centro de Filosofia Brasileira do Programa de Pós-graduação em Filosofia-PPGF da UFRJ realizou, com patrocínio do PPGF, do Convênio BB-UFRJ e da CAPES, nos dias 24-25/08/2009, o terceiro encontro anual do Seminário Internacional Farias Brito em torno ao tema “Aristotelismo: A Ciência da Alma como Problema". A Conferência Farias Brito coube ao Prof. Dr. Mário Santiago de Carvalho, da Universidade de Coimbra.

Local: Instituto de Filosofia e Ciências Sociais-IFCS
Largo de São Francisco de Paula, 1
Sala Celso Lemos (3º Andar)
20051-070 Rio de Janeiro-RJ
Telef.: (021) 2224-6379

Programa
24/08/2009 (segunda-feira)
10:45 Abertura
11:00 Conferência Farias Brito: “Ciência da Alma e conhecimento de si no Comentário Jesuíta Conimbricense a Aristóteles (1598)”
Prof. Dr. Mário Santiago de Carvalho (Universidade de Coimbra)
13:00 Intervalo
15:00 “O Aristotelismo como Tradição Originária da Filosofia no Brasil”
Prof. Dr. Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)
15:40 “A Mente e o Conhecimento de si em Tomás de Aquino”
Prof. Dr. Leonardo Almada (CEFIB/UNESP)
16:20 “Antônio Vieira e a Medicina da Alma”
Profa. Dra. Marina Massimi (USP)

25/08/2009 (terça-feira)
10:00 “Guilherme de Ockham e o porquê da abstração”
Prof. Dr. Rodrigo Guerizoli (UFRJ)
11:00 “Percepção e Cognição nos Conimbricenses”
Prof. Dr. João Batista Madeira(FFCLRP-USP)
13:00 Intervalo
15:00 “De Anima III, 9-11: Vida e Movimento”
Prof. Dr. António Manuel Martins (Universidade de Coimbra)
16:00 “De Anima III: Alma e Afecção”
Prof. Dr. Marco Zingano (USP)

Comissão Organizadora
Prof. Dr. Luiz Alberto Cerqueira (UFRJ)
Prof. Dr. António Manuel Martins (Universidade de Coimbra)

Centro de Filosofia Brasileira-CEFIB
Largo de São Francisco de Paula, 01 - Sala 325 C
20051-070 Rio de Janeiro
Telefone: (021) 2221-0034 - Ramal: 325
Fax: (021) 2221-1470
E-mail: cerqueira@ifcs.ufrj.br

Ciência da alma e conhecimento de si no comentário jesuíta conimbricense a Aristóteles (1598) - Conferência Farias Brito

Mário Santiago de Carvalho (universidade de Coimbra)

Notas ao fim do texto

Preâmbulo 
Com um ponderado sentido de responsabilidade filosófica acedi ao honroso convite para inaugurar este IIIº Seminário, reunido sob a égide de Farias Brito (1862-1917). Motivou-me, no seu espiritualismo, – que como atestou o Prof. Luiz Alberto Cerqueira, “ficou marcado pela (…) abertura para o divino [e] para o mistério, numa época em que o aristotelismo português se encontra definitivamente superado e o Brasil se empenha numa consciência crítica da própria formação social”[1] – motivou-me, dizia, uma dupla vertente, transcendental e histórica, assim se justificando sem constrangimento o tema que escolhi para vos falar nesta ocasião. Terminarei, por isso, evocando a relação da psicologia com o conhecimento de si, tal como o podemos interpretar na perspectiva do volume do Comentário ao ‘De Anima’ de Aristóteles composto em Coimbra, pela Companhia de Jesus, no derradeiro decénio do século XVI[2]. À luz da definitiva superação do aristotelismo português por F. Brito, não resulta bizarro – atrevo-me a conjecturar – o desafio que aceitei, pois em 1912 este distinto filósofo brasileiro, “moderado” e “sereno” crítico do positivismo[3], formulava uma por si chamada “psicologia transcendente”, ou antes, transcendental, como atalhou o seu exegeta, interpretada enfim como “o método próprio da filosofia”[4]. Ora, nas páginas do Comentário organizado pelo padre jesuíta Manuel de Góis (1547-1597), o elogio da scientia de anima – expressão que, com a também propalada “scientia animastica”, seja esta de Agostinho Nifo ou de Marcantonio Genua[5], antecipará a designação que acabou por vingar, “psicologia”[6] – é justificado pelo contributo desta matéria para a ética e para o conhecimento da verdade. ‘Mutatis mutandis’, atente-se na afinidade desta posição com a afirmação de um dos mais famosos neurocientistas, António Damásio, de acordo com a qual “só criamos um sentido do bem e do mal, assim como normas de comportamento moral, quando conhecemos a nossa própria natureza…”[7] Não há, bem entendido, em Coimbra, qualquer identidade com o projecto de Farias Brito, mas hoje gostaria de atender à coincidência de essas duas vertentes se articularem com o conhecimento de si, instalando-se explicitamente na vetusta linhagem délfica e socrática do “Conhece-te a ti mesmo”, que o nosso Jesuíta justifica afirmando que “ninguém se pode conhecer a menos que tenha examinado atentamente a dignidade e a natureza da sua alma”. Ouçamos então tão solene e elogiosa abertura:

“Pelo rigor da demonstração, da matéria sobre que versa e pela nobreza, a ciência da alma sobressai de entre as outras partes da Filosofia, quer seja para regular e gerir a vida com dignidade, quer seja para conhecer tudo da verdade útil.” (In III De Anima - Proemium)

Assim se lê, tal e qual, no Comentário que os Jesuítas de Coimbra compuseram primeiro para explicar aos seus alunos o ‘De Anima’ de Aristóteles, desde já retendo a afirmação de que “o conhecimento de si” depende do exame ou da indagação da dignidade e da natureza da alma.

Como é sabido, o volume que edita o comentário ao ‘De Anima’ faz parte de uma impressionante série editorial, composta por oito títulos (1592-1606), que conheceu fama ou expressão mundial, embora, ao contrário do que orgulhosamente haviam augurado os três censores nomeados para apreciarem a obra, sem que a “impressão” conferisse “imortalidade” ao Curso. Mas não seria exagerado apresentá-lo desta maneira, pois as suas milhares de páginas estenderam-se do Atlântico aos Urais, ainda utilizadas nas escolas católicas da Polónia e nas ortodoxas da Ucrânia no século XIX, e chegaram mesmo a conhecer uma tradução na China. No contexto europeu, o volume do ‘De Anima’ recebeu, pelo menos, quatro edições em Itália, seis em França e sete na Alemanha[8]. Seja-me ainda permitido, entre muitos outros testemunhos possíveis acerca do valor desta série, citar o de um autor insuspeito, o filósofo português marxista, durante muito tempo mais conhecido internacionalmente, Vasco de Magalhães-Vilhena, que não hesitou em reconhecer a importância dos Jesuítas Conimbricenses, posta ao lado da de António Sérgio, “caso ímpar na cultura portuguesa”[9]. Terá assim todo o sentido, proponho, reconhecer-se historiograficamente uma escola de Coimbra, tal como se fala de uma escola de Marburgo ou de uma escola de Viena ou de Oxford.

 Situação da ‘scientia de anima’ no conflito das interpretações 
Quer a malha textual do Comentário, quer a respectiva problemática apresenta-se historicamente sobredeterminada, para não dizer, sobrecarregada. O que quer dizer “examinar atentamente a dignidade e a natureza da alma humana” quando se comenta Aristóteles, depois de S. Agostinho, de Avicena, de Averróis, de S. Tomás e dos seus mais novos e circunspectos discípulos e críticos? E para tudo complicar: como ler a relação desta ciência com “a vida comum e os costumes”, com a “filosofia primeira”, e “por uma razão comum”, com “todas as partes da filosofia”?

Excessiva ambição, decerto, acrescida pelo facto de “a meditação sobre a alma” ser legível nos múltiplos e complexos quadros “da razão e da prudência, como que (citando Trismegisto no Asclépio) “horizonte da eternidade e do tempo”, do inteligível e do nexo da natureza corpórea e dos limites:

“Ou, como outros disseram, suma de todo o mundo, pois a natureza intermédia representa as extremas, a superior como imagem, a inferior, como exemplar”. (In III De Anima - Prooemium)

É imperioso ler estas palavras nos termos engajados de uma tomada de posição perante uma polémica coeva – tenhamos presente que desde o Quattrocento se discutia precisamente a natureza do Homem e o seu lugar central na cadeia do Universo[10] – polémica que, na esteira de Simplício, circunscrevia o “estudo científico da alma” a uma “mése ton hyperphyon kai ton physikon”, quer dizer, entre o que supera a natureza e a própria natureza[11]. Como não evocar, pois, A. Nifo – cuja primeira leitura de Simplício admitia o carácter intermédio ou “matemático” da scientia de anima (1498) –; ou a rejeição desta tese matemática por Pietro Pomponazzi – este desvincula-a da metafísica a identificando inteiramente a scientia de anima com a filosofia natural (1514) –; ou ainda M. Genua (1540), o qual, apelando para Averróis e para Simplício, confere pela primeira vez à psicologia um lugar distinto, inidentificável quer com a metafísica, quer com a filosofia natural[12]? Evidentemente, os Jesuítas conimbricenses acompanham a corrente latina, celebrada já por Nifo nos nomes de Alberto Magno, Tomás de Aquino, Egídio Romano ou João de Jandun, mas essa linhagem chegava agora às margens do rio Mondego também pelas mãos do velho Alexandre de Afrodísia (séc. III a.C.) e de Jacopo Zabarella (+ 1589), quiçá o mais distinto dos discípulos de Genua citado pelos nossos Jesuítas, o qual circunscrevia a scientia de anima ao âmbito da física. Não se há-de estranhar, por isso, a dupla vertente do alinhamento conimbricense: epistemológica, pelo lado do aristotelismo, que integrara a psicologia na física natural; e ontológica, pelo lado de São Tomás, não obstante o tomismo haver-se deparado com os fundamentos biológicos da noética[13]. Talvez cause até maior surpresa a concessão à moda hermética, mediante uma afirmação de fé helenística e renascentista no acordo Platão e Aristóteles – acordo este, importa já anotá-lo, que não evitará compatibilizar a ‘forma’ aristotélica com o ‘eidos’ platónico:

“E sendo a alma uma forma, deverá ser uma substância. Deve afirmar-se isto segundo a filosofia Académica e Peripatética, como se patenteia no diálogo de Platão sobre a alma, intitulado Fédon, e com base no que Aristóteles ensinou, quer profusamente, noutros passos, quer no primeiro capítulo[do De Anima], quando afirma que a alma é acto primeiro substancial” (In III De Anima II c.1, q.1,a.4)

Sem escapar por completo, como já se percebe, a uma prisca sapientia, esse acordo complexificava-se mais ainda, mediante um apelo renovado à Patrística, e metafisicamente fundado pelo motivo criacionista de uma dada concepção da Providência, mais estóico do que aristotélico. Na verdade, escrevem os autores de Coimbra, uma vez que “a potência divina se difunde por todo o cosmo criado”, a “lei” que vemos presidir à harmonia, na sua quota-parte antropológica, só pode ser compreendida por uma “forma substancial”, no sentido de “substância espiritual”[14]. Convido-vos a atentar no tom algo cusano subjacente ao seguinte excerto:

"Pode, em suma, demonstrar-se que a alma é uma substância, como expôs magnificamente Gregório de Nissa, na disputa De Anima. (…) [A]quele que vê no mundo a variedade harmónica das coisas, a paz diferenciada dos opostos, a disputa em que se chega a acordo, depressa verifica, se concluir correctamente, que existe uma certa potência divina, que se difunde por todas as partes do mundo, contendo e encerrando todas as coisas no seu movimento, como também verificará que em qualquer coisa viva as qualidades contrárias são conservadas para reconduzir à harmonia. Não só as afecções opostas dos órgãos estão contidas numa determinada lei para que não se destruam mutuamente, como também funções tão diferentes são governadas com tanta ordem e consenso, que se compreende plenamente existir uma única forma de cujo mérito e benefício se perfazem todas as coisas. Esta forma não poderá ser acidental, mas substancial, porque tamanha eficácia e tanto poder sobre os membros das coisas vivas, como um governo das qualidades que se opõem, não poderá ser próprio de um acidente.” (In III De Anima II c.1, q.1, a.4)

Em vista do que acabámos de lembrar compreende-se todo o esforço do Comentário coimbrão em aprofundar a relação da scientia de anima com a filosofia natural. Semelhante pesquisa deveria ser primeiramente de ordem editorial, mas, para os autores lusitanos, a inscrição da ciência da alma nos quadros da física, também procurava obstar a duas ameaças contemporâneas, quais a de interpretar o elogio e todos os seus méritos acabados de lembrar, fosse no âmbito da metafísica, fosse no de um estrito naturalismo. Dissemos “contemporâneas”, pois em Coimbra parece ter merecido uma especial atenção a obra do Bispo de Caserta, Antonio Bernardi (+1565)[15], ao qual voltaremos. Contra as posições mais extremas, os Jesuítas reivindicarão a exclusividade do estudo da alma no âmbito da física, abrindo apenas uma excepção para a dimensão teológica e preternatural da alma, mais própria do chamado estado da alma separada, sobre o qual, aliás, o nosso volume chega a acrescentar um apêndice homónimo a que ainda recorreremos. Do ponto de vista editorial, porém, a discussão passava por seguir ou Paulo Veneto, que sustentava que o tema do De Anima era o corpo animado, vindo por isso, esta obra, após os Parva naturalia, ou opinião mais generalizada, depois dos Meteorológicos. Decisão importante, pois não é a mesma coisa interpretar-se a scientia de anima ou como ciência do corpo animado (Veneto e Zabarella) ou como ciência da alma que anima todos os corpos vivos (Góis), inaugurada, por isso, na passagem ‘meteororum/de anima’.

Está, enfim, enquadrada a razão pela qual “a doutrina da alma existe como um compêndio de ciência das coisas humanas e divinas e prepara-nos para todo um outro conhecimento da verdade.” Apoiando-se nos Solilóquios de Agostinho quando afinal pretendiam começar a comentar Aristóteles, os Jesuítas de Coimbra declaram:

“…há duas questões principais em filosofia; uma acerca da alma, outra acerca de Deus. A primeira, faz com que nos conheçamos a nós mesmos, a outra, que conheçamos a nossa origem. Aquela é-nos mais agradável, esta é mais gloriosa, aquela torna-nos dignos de uma vida feliz, esta torna-nos bemaventurados.” (In III De Anima - Prooemium)

Neste texto, de ritmo binário, também ecoa uma concepção de felicidade ou bem-aventurança (felicitas/beatitudo) que os Jesuítas Conimbricenses tinham desenvolvido no pequenino volume das disputas sobre a ‘Ethica’ (1593), monografia que, ao acolher uma felicidade própria do ser humano como membro da sociedade civil, os permitiria aplicar o âmbito da scientia de anima também à ciência da acção, tornando-nos “dignos de uma vida feliz”. Trata-se aliás de uma coerência aristotélica, combinar ética e política. Contudo, importa ter presente que tal solução é pré-moderna, pois a ciência da acção em causa, “ao mesmo tempo que comporta um esplendor próprio inerente à defesa da coisa pública…” traduz-se na possibilidade que um espírito superior tem de “conservar a moderação, de reprimir os apetites errantes, de não se envaidecer com a vã ostentação.”[16]. Seja como for, a submissão da política à ética e o entendimento que os Jesuítas fazem da filosofia moral como “animae medicatrix”[17] também concita a anterioridade da filosofia natural, na medida em que, antes de mais – insistem os autores – só se pode saber em e no que cuidar caso se conheça a natureza da alma (quid sit anima)[18].

É agora patente que o Comentário ao De Anima nem sempre está (nem sempre pode estar) com Aristóteles, ou melhor, ele promove uma interpretação do Estagirita que convém conhecer sem paralisantes prejuízos. Atrever-me-ia, por isso, à liberdade de dois paralelos. O primeiro, de cariz musical, na esteira de uma evocação por mim já feita de Palestrina, noutro lugar, para recordar que o episódio da leitura de Aristóteles em Coimbra faz-nos pensar na inusitada história do Terceiro Concerto Brandeburguês de Bach, também ele eterno sobrevivente a um número infinito de transformações[19]. O segundo paralelo, que decerto também me perdoarão, para lembrar que a severa reprimenda de Hegel à atitude dos seus contemporâneos franceses em relação a Aristóteles – eles que atribuíam cegamente ao Filósofo afirmações, sem se preocuparem em verificar se elas se encontravam nos seus escritos![20] –, colheria também em algumas leituras impressionistas ou ideológicas dos Jesuítas em nossos dias. Oxalá este preconceito negativo se comece a desvanecer.

O itinerário de um Comentário
Tratado o lugar epistémico e sócio-ideológico da scientia de anima, passemos àquela dimensão que Alison Simmons chamou a “reconstrução racional” da psicologia aristotélica[21]. A obra psicológica de Manuel de Góis – realizada pelo menos dez anos antes da data da sua publicação – não pode deixar de compartilhar do movimento de uma reflexão geral no seio da Companhia de teor pedagógico, filosófico e teológico. No que toca à psicologia, além das dimensões a que noutro lugar me referi[22], poderíamos enquadrar aquele movimento à luz dos trabalhos paralelos e mais ou menos coevos de Francisco Toledo – publicado em 1575 o seu Comentário remonta aos anos 60 – e de Francisco Suárez, cujo De Anima, embora editado só em 1621, precisamente por um dos autores ligados ao Curso de Coimbra, Baltasar Álvares, provém dos anos 70 do século XVI. A leitura do volume de Coimbra revela-nos, por um lado, parcialmente, a adopção da metodologia literária de Toledo e, por outro, um perfil ecléctico como o de Suárez que,articulando a tradição aristotélica e tomista com a psicologia renascentista, não hesita em discutir as teses mais recentes, como veremos. É por isso possível delinear a organização sistemática da psicologia coimbrã, da seguinte maneira:

I. Introdução
I1. Situação literária da scientia de anima
I2. Definição da alma (o chamado methodus inveniendi animae definitionem)
I3. Fundamentação física da noética
II. Natureza e Divisão da alma (cc. 1-2)
III. As faculdades em geral (c. 3)
IV. A vegetativa (c. 4)
V. A sensitiva (cc. 5-12)
VI. Sentidos externos (c. 1)
VII. Sentidos internos (cc. 2-3)
VIII. Faculdade intelectiva (cc. 4-8)
IX. Vontade e movimento dos/nos seres (cc. 9-13)

Sobre I. queremos lembrar duas coisas. Primeiro, que o carácter diaporemático e doxográfico do livro que abre o De Anima era razão invocada desde o século XIII para o mesmo não ser ‘lido’ na íntegra, atitude que também ficará consagrada numa determinação do Ratio[23]. Depois, para justificar a imediata problematização textual da independência da alma intelectiva. De facto, a pergunta “se há ou não um acto ou afecção próprio da alma e se o pensamento pode, nesse caso, dar-se sem o corpo” é epistemológica e, nessa medida, convoca as três ciências teoréticas – matemática, física e metafísica – a fim de justificar por que razão Aristóteles atribuiu à física o estudo da alma.

Sobre as restantes divisões, teríamos de dizer o seguinte. Há capítulos no De Anima que suscitam discussões amplas que não podiam deixar de extravasar do legado aristotélico; é o caso, naturalmente, do primeiro capítulo que, a propósito da definição aristotélica de psyché, ultrapassa o aristotelismo em aspectos mais teológicos (criação da alma intelectiva por Deus, o momento do tempo ela é infundida no corpo e a dignidade das almas intelectivas) e entra em aspectos históricofilosóficos (relação da alma intelectiva com a teoria hilomórfica, monopsiquismo, conformidade alma/faculdades/corpo). É o que se passa também com as questões discutidas no capítulo sexto sobre a natureza da sensação, o tema das espécies sensíveis, a questão do conhecimento abstractivo baseado exclusivamente nos sentidos, a relação entre sensível comum e espécie, e o problema do erro. É o que sucede ainda com as nove questões sobre a vista, de que nos ocupámos no último encontro da Sociedade Aristotélica, ocorrido em Coimbra[24]. Porque os capítulos a seguir (mormente 8 a 11) se dedicam aos restantes quatro sentidos, também detalhando algumas questões a propósito (quatro questões sobre a audição, cinco sobre o olfacto, duas sobre o paladar e três sobre o tacto), parece-nos ser de salientar o amplo horizonte e a grande importância da teoria da percepção sensível, mormente os problemas de cariz biológico-naturalista (o tema do cristalino) ou físico-matemático (a tradição da ciência ‘perspectiva’).

À luz da divisão em nove partes dos três livros com suas setenta e uma questões, creio que podemos confirmar a afirmação de Katherine Park, de acordo com a qual “a doutrina sobre a percepção é sobremodo o aspecto mais complicado e pormenorizado das obras do Renascimento dedicadas à alma orgânica”[25]. No caso dos Jesuítas portugueses, a verificação é flagrante. Quase cinquenta por cento das questões de Coimbra – 35 questões para sermos exactos – dedicam-se à teoria do conhecimento sensível, quinze questões versam a natureza e a essência da alma e catorze ocupam-se do intelecto. Impõe-se, portanto, esta observação: os nossos autores parecem ter, da psicologia aristotélica, uma visão mais afim à de G.E.R. Lloyd – a psyché é a forma de um corpo vivo em potência[26] – do que à da tradição antiga da metafísica da alma. Seja como for, o duplo aditamento editorial do volume consagrado ao De Anima, quer dizer, a existência de um tratado sobre a alma separada, por um lado, e de um segundo tratado sobre os cinco sentidos, por outro, não deixa de antecipar editorialmente os dilemas de uma época filosófica nova dividida entre o que virá a chamar-se a res cogitans e a res extensa. Foi por isso, aliás, que quando estudámos a teoria coimbrã das paixões nas vésperas da antropologia moderna, concluímos que, atendendo ao facto de alma e corpo se estarem prestes a separar radicalmente, parece ser de assinalar que uma eventual revalorização teológico-moral das paixões fundada no tratamento físico das mesmas, já não seria uma estratégia legível para os Homens dos séculos XVII e vindouros. Reconhece-se o choque entre os dois paradigmas. Enquanto um virá defender que as paixões da alma são boas para o corpo, o outro ainda repisava que as paixões do corpo eram boas para a alma[27].
No entanto, é perfeitamente indiscutível a actualização do Comentário lusitano. Todas as características que K. Park e E. Kesler contaram entre os novos estímulos do século XV se encontram também no texto português, a saber: o apreço pelos comentários e comentadores gregos; a simpatia para com as novas traduções; a aceitação de pensamento não-aristotélico e sobretudo platónico ou platonizante; a incorporação de observações biológicas e médicas; a abertura a várias dimensões do Humanismo[28].

O poder criativo da imaginação (phantasia/ imaginatrix facultas)
Haveria muitas possibilidades de evidenciar a heterodoxia aristotélica coimbrã, quer dizer, a sua inovação perante o difícil texto comentado. Na impossibilidade de sermos exaustivo, abordemos um eventual vinco jesuítico (ou inaciano) que se pode captar no texto do comentário, sobretudo a propósito dessa difícil noção aristotélica de phantasia. Sensíveis próprios, comuns, órgãos dos sentidos, sentido comum, meio de ligação, espécies sensíveis e imaginação são aspectos da teoria do conhecimento aristotélico-tomista que convém dominar. Tenha-se presente, a título exemplificativo de uma inovação, como os autores acompanham Fonseca, v.g., ao reduzirem para dois os sentidos internos, sentido comum e fantasia[29] – como se sabe Suárez, mais radical, propenderá para um único sentido interno[30] – e também o facto de as páginas, quer sobre alguns sentidos em particular, quer sobre o sentido comum e a actividade dos sentidos, poderem ter suscitado a atenção mais ou menos explícita de Descartes[31].

Ora, ao reapreciarem a phantasia enquanto noção-fronteira[32], os Jesuítas teriam de atender, pelo menos, quer ao carácter dualista do órgão (a phantasía pertence à aisthetiké mas também a ultrapassa, no auxílio ao intelecto que pensa e ao intelecto que age[33]), quer à tripla função desse órgão. “Tripla função”, pois à phantastiké e à logistiké ou bouleutiké, a phantasía é ainda endossável à esfera construtivo-artística do poein; sublinhe-se que, ultrapassando Platão no que às artes e às metáforas diz respeito, esta última esfera implica sobretudo “o vir-ao aparecimento (phainestai), o vir à luz (phos), o fazer um de muitos”[34].

Neste último ponto, aspecto a frisar é o relativo à crítica da posição averroísta. Ao recusar o intelecto a qualquer ser humano individualmente considerado, o averroísmo definia-o pela faculdade imaginativa (cogitativa), dimensão que muito interessaria ao modelo do homo artificialis do Renascimento, mas que os Jesuítas procuraram refutar. Enquanto Toledo o havia feito à cabeça do seu Comentário do ‘De Anima’ (1575), Manuel de Góis integrou-o na discussão da definição da alma, citando também as passagens paralelas dos concilio de Viena (1311-12) e de Latrão (1512- 17). Lembremos que este último ainda será evocado por Descartes[35]. Para ambos os jesuítas tratava-se de seguir uma determinação romana, por duas vezes repetida (1567 e 1572), talvez por causa de Pereira (+1610), o qual, segundo a versão de um escandalizado documento romano, adjectivava Averróis de ‘divino’. Por isso, no Ratio de 1586 se estabelecerá a impossibilidade de estudar Averróis monograficamente (tractatus philosophicus), apenas autorizando a metodologia da quaestio ordinaria, como se fez em Coimbra[36].

Tenhamos no entanto presente que o texto conciliar de Latrão aglutinava duas opiniões distintas, a da mortalidade da alma (de Alexandre e Pomponazzi) e a da sua unicidade (de Averróis, Sigério de Brabante, Paulo Veneto e Alexandre Achillini), e que talvez essa associação fosse uma resposta ao avanço do platonismo. Não é verdade que a Theologia platonica de immortalitate animorum de Ficino acusava precisamente os aristotélicos contemporâneos, e ‘tutti quanti’ que negavam a imortalidade da alma, de serem averroístas e alexandrinos?[37]

Dando mostras de uma sensível actualidade, a conjugação de todos esses “erros” será debatida em Coimbra no quadro da intervenção de Antonio Bernardi, personagem aludido acima. Nos livros 32 e 33 do seu Eversionis Singularis Certaminis, este bispo de Caserta professava a pluralidade dos intelectos, segundo a fé, mas, ao mesmo tempo, agora segundo os fundamentos naturais (ex fundamentis naturae), a sua impossível multiplicação[38]. O intelecto seria assim parte precípua, mas não suficiente, da substância humana, confinando-se esta, no que a cada indivíduo diz respeito, ao papel capital da alma sensitiva. Desta maneira, qualquer diversificação ou individualização dos conteúdos do conhecimento assentaria exclusivamente numa informação de diferentes corpos. Também ao discutir sobre a imortalidade Bernardi repete que o Homem detém duas formas substanciais, duas almas realmente distintas (in homine re distinctas)[39], embora não distintas no seu suporte (in subiecto), diferença que, de novo, reforça a diversidade dos conteúdos cognitivos, na medida em que só a alma sensitiva detém uma relação substancial com o corpo e com os órgãos corporais. Pomponazzi, que de igual modo havia defendido ser o Homem, nem simplesmente mortal, nem imortal, associara tal defesa ao nosso já conhecido tópico do “nexo” ontológico, “mediumque inter mortalia et immortalia…”[40] Já para Bernardi a função da intermediação competiria à imaginação ou phantasia – o que equivale a pôr no mesmo plano ‘pensar’ e ‘pensar nas imagens’[41] – mas como, para os Jesuítas, essa função deveria competir ao indivíduo, por inteiro, caber-lhes-á desenvolver tal princípio de combate epocal sem menoscabar a imaginação.

Desde logo porque é a ela que compete servir o intelecto singular[42]. Dito de outra maneira, nenhum de nós pode pensar, ou seja, o intelecto possível singular ou individual não pensa sem a contribuição do intelecto activo, mas este requer a presença das imagens impressas na imaginação, discriminando-as, de seguida, graças ao concurso imediato de uma imagem expressa[43]; estas imagens sensíveis expressas concorrem ou instrumentalmente ou parcialmente com o intelecto agente, com vista à formação da espécie inteligível, sem cujo contributo, repetimos, o intelecto possível não pensa[44]. Voltaremos aqui, mais adiante, a propósito da natureza do pensamento.

Baseados na importância que Inácio de Loyola atribuiu aos sentidos nos célebres Exercícios Espirituais, julgamos poder encontrar um outro papel individualizador na phantasia. O tema mereceu a atenção de R. Barthes e de Marina Massimi. Enquanto o autor francês falou, a propósito, de uma “economia totalitária” que, como um novelista, tudo recupera (o acidental, o fútil, o trivial) ao serviço do discernimento e da fragmentação da imagem[45] – daí que, escreve Barthes, “a imagem inaciana não seja uma visão, mas uma vista”, na acepção que a palavra tem quando nos referimos a uma 'vista do Rio' tomada dentro de uma sequência narrativa[46] – a professora italiana optou por evidenciar o “uso sistemático da contemplação interior, utilizando os cinco sentidos da imaginação”, embora conferindo papel preponderante ao “aporte visual da imagem gráfica”[47]. Pela minha parte acrescentaria o conspícuo papel da visão[48], pois, como dissemos já, rapidamente salta à vista do leitor do Comentário ao De Anima a enorme amplitude concedida ao estudo minucioso da visão. Ao dar acolhimento à literatura mais antiga e mais moderna sobre o tema, o estudante passava a gozar de um conhecimento técnico ímpar para a construção ou a composição do lugar, aspecto preparatório crucial no exercício meditativo “à la Proust”.

Convoquemos, pois, o poder criativo da imaginação (Einbildungskraft), precisamente no sentido da transformação de um objecto, interiorizando-o, como que lhe conferindo “uma outra naturezaa partir da matéria que a natureza efectiva lhe dá”[49]. Mais do que em atentarmos que a fantasia reside no cérebro, a marca distintiva da imaginação sobressairia frente ao sentido comum: se o papel deste se restringe à configuração de similitudes e os seus sensíveis à quantidade, a faculdade da imaginação – que reúne em si a estimativa, a cogitativa e a memória – é origem de proposições e do discorrer acerca do singular, singular que se actualiza com o conhecimento da coisa (ausente) actualizada pela imaginação[50]. Não teríamos outra maneira de justificar este inédito e atrevido paralelo com a terceira Crítica senão chamando a atenção para o modo etimológico (a nominis etymologia) como os Jesuítas de Coimbra são sensíveis à palavra de Aristóteles que remetia phantasia para phos (429 a 3), na versão de Argirópulo, “…quod nomen imaginatio ab ipso lumine sumpsit, phantasiaque dicitur, quia sine lumine visio fieri nequit[51]“, quer dizer: “…é pelo facto de o termo ‘imaginação’ ser tomado da própria luz que lhe damos o nome de ‘fantasia’, pois sem a luz é impossível a visão”. Além de se sublinhar a afinidade ou a relação entre a sensação e a imaginação, como seria de esperar, aponta-se também inequivocamente para uma componente que permite a passagem do gnosiológico ao ético, e do conhecer ao pensar, defendendo o seu estado de permanência na mente de quem está a fazer o seu exercício individual de discernimento. O papel relevante da imaginação é assim justificado, pelo facto de a “fantasia tomar o seu nome da visão, que ocupa o lugar principal entre todos os sentidos externos, visto que o recebe da luz”. E os Jesuítas continuam, quiçá fazendo batota: das duas partes da partícula “apó tou pháous kaí tes staseos”, a segunda parte (i.e.: ‘tes staseos’), explicam aos seus jovens alunos, sem deixar de remeter para uma profilaxia das paixões da alma, “indica o que se torna permanente e de certo modo justo (permanens et quidem merito), visto que a imaginação permanece (permanet) quando a função dos sentidos externos cessa.”[52] É com cautela que falo em batota, mas não há dúvida que, apesar de ser feita em grego no texto latino do Comentário, a expressão “tes staseos” não se lê no texto de Aristóteles. Passámos, no entanto, da memória sensitiva à memória intelectiva, sendo a propósito desta que os autores de Coimbra farão coincidir o IIIº livro do De Anima de Aristóteles com o Xº do De Trinitate de Agostinho[53].

O que significa pensar?

Propomo-nos começar por responder à pergunta sobre a natureza do pensamento, regressando ao conhecimento dos singulares e conjugando-o com a questão das “espécies”, termo técnico de então para traduzir o que hoje chamamos prosaicamente “transmissão da informação”.

Tema candente a dividir tomistas e escotistas – desde o século XV que as clivagens escolares se faziam sentir com acutilância – era o respeitante ao conhecimento dos singulares mediante espécies inteligíveis próprias. Já se avaliou a posição dos Jesuítas de Coimbra, a este respeito, como “débil” (“relaxed attitude”)[54], na medida em que eles hesitaram entre teses prováveis, não obstante orientarem os seus alunos para a negação da existência de espécies inteligíveis próprias dos singulares[55]. Sabemos que Suárez se havia inclinado a favor da existência desse tipo de espécies[56], mas, tal como no Comentário à Metafísica de Fonseca (Ic2q3s5), também na Física (Ic1q4a3) Góis explicará que conhecemos as coisas singulares por meio das espécies das naturezas comuns, espécies formadas a partir das imagens sensíveis, de acordo com um processo de inflexão do entendimento, ao socorrer-se de uma potência inferior, a phantasia precisamente. A referida inflexão era descrita como uma linha curva (linea flexa) que se distenderia à medida que o entendimento percebesse o universal, mediante uma conversão a si próprio, afastando-se finalmente dos objectos sensíveis.

Estamos perante um problema fulcral em teoria do conhecimento posto que, como sabemos, desde o IV Quodlibet de Henrique de Gand (1279) que, aceitando-se embora a teoria consagrada da propagação das espécies (Rogério Bacon), se iniciara a simplificação do processo cognitivo, primeiro pela eliminação das espécies inteligíveis, substituídas por uma dada autonomia intelectiva (habitus scientalis[57]), depois pela negação das espécies sensíveis (Pedro João Olivi), até que a denotação ockhamista acaba por possibilitar o advento do objecto na sua absoluta apresentação. Como é bem sabido, sustentando um contacto directo e imediato entre o objecto e o órgão dos sentidos, Guilherme de Ockham considerava as “species” redundantes[58], um obstáculo para o conhecimento do objecto[59].

O que os sentidos externos e internos captam é um sensível singular da ínfima espécie. Contudo, no processo de abstracção, verifica-se, da parte dos Jesuítas, um movimento de demarcação do horizonte de actividades do intelecto agente no quadro do pensar[60]. Frase chave é a de que “o intelecto agente e as imagens sensíveis estão para as espécies inteligíveis como o intelecto possível e as espécies inteligíveis para o acto de pensar”[61]. Quer dizer: sem a intervenção do intelecto possível (patiens) não se pode abstrair a natureza genérica[62]. Apresentado como uma faculdade intelectiva que se experimenta a si mesma como pensamento – um lugar-comum desde o século XIII, importa talvez lembrá-lo[63] –, o intelecto possível é considerado simultaneamente activo e passivo. É passivo relativamente ao objecto, porque recebe a espécie graças à intervenção do fantasma. É activo, obviamente, do ponto de vista da intelecção[64], chegando mesmo os Jesuítas, após evocarem o dissídio entre platónicos e aristotélicos, a admitir um certo inatismo, designadamente em vista de dois hábitos, o dos princípios especulativos e o dos princípios práticos (a sindérese)[65]. Esta admissão não parece pôr em causa a tese aristotélica de que a alma nasce desprovida de quaisquer espécies, quer dizer, que o intelecto passivo, sob a perspectiva gnoseológica, é originariamente (ex sua primaeua origini) pura potência. E os nossos autores nem sequer parecem ver como esta última tese pode colidir com uma afirmação anterior acerca de uma inata “sanctitas naturalis a Deo impressa”, sobretudo levando em conta o princípio de uma unidade específica ou radical do intelecto com as suas actividades[66].

Eckhard Kessler considerou ser a respeito do processo de intelecção que os Jesuítas de Coimbra manifestaram uma tese própria, recusando as posições, quer de tomistas, quer de escotistas[67].

Contudo, como em Melanchton, segundo Kessler, e em tantos outros mais, segundo H. J. Müller, a intelecção caracteriza-se por ser geradora do verbo, razão pela qual pensar nada mais é do que uma linguagem interior, tese que reabilita e reequaciona a ‘ideia’ augustinista explicitamente convocada no texto jesuíta. A intelecção dá-se pelo verbo mental, que é uma assimilação ou representação da coisa conhecida mediante a espécie expressa dessa coisa. A essência ou natureza do pensar consiste em informar e em exprimir de maneira inteligível a coisa em si mesma, o que sucede graças à “notitia genita seu per uerbum”. Sendo geradora de um verbo, a intelecção é uma acção, não uma qualidade ou disposição, embora o verbo seja uma qualidade do espírito que conhece[68]. Se a assimilação em que o pensamento se traduz põe em relação a potência intelectiva com a coisa pensada (que se identificam no ser, mas são formalmente diferentes), os Jesuítas interpretam Tomás de Aquino no sentido em que o verbo não é apenas aquilo pelo qual singularmente se pensa a coisa expressa por si (id quo), mas também o processo de intelecção ‘terminado’, i.e., intencionalizado ou universalmente objectivado (id quod). Quer dizer, de uma certa maneira antecipam em quatrocentos anos a interpretação dual de Dominik Perler[69].

Não querendo entrar noutro conflito de interpretações[70], basta-nos ter presente que nos séculos XV e XVI os pensadores se dividiam nestas matérias de reconhecida produtividade histórica moderna. Discutia-se, por exemplo, a diferença entre o “conceito formal”, que designa o acto de conhecimento, a imagem expressa da coisa[71], e o “conceito objectivo”, a própria coisa enquanto conhecida ou concebida pela mente[72]. Ora, se nos fosse permitido passar de novo ao Comentário à Physica, de 1593, detectaríamos a forte presença da discussão em torno do “exemplar ou ideia” enquanto conceito objectivo (ratio obiectiva)[73], proposta esta que em Coimbra é apresentada no quadro de uma solução pretensamente harmónica entre Tomás de Aquino (De Ver. q.3, a.1) e Agostinho (De Civ. Dei XII c.25). Além do mais, no mesmo Comentário criticar-se-á a quase ignorância de Aristóteles a respeito da causa exemplar ou da teoria das ideias, aspecto considerado decisivo, quer para o estudo da metafísica (ad sapientiae studium), quer para o da ética (ad morum disciplinam)[74]. Impossível também não reparar no elogio que os nossos Jesuítas fazem, perante os seus alunos, dos “platónicos, aqueles de entre todos os antigos filósofos que mais exaltaram as ideias, considerando-as como realidades independentes da relação com a matéria e da singularidade material”[75]. A noção de “exemplar” enquanto “conceito objectivo” é, por fim, explicada em três pontos: (i) aquilo (id quod) que um especialista intui e exprime mediante imitação (intueatur et imitando exprimat); (ii) a expressão da coisa, quer no seu conteúdo exemplar imitável, quer no conceptual que a representa (exprimere rem, uel quatenus est quid exemplariter imitabile, uel ratione conceptus, in quo repraesentatur); (iii) a ideia, que em Deus se encontra de forma eminente e, no Homem, como imitação[76]. Sem se darem conta dos problemas e das dificuldades ou embaraços desta imbricação – e ela não será menos patente no emprego de certa terminologia noética simultaneamente tomista e augustinista –, é sobretudo o motivo da representação que sobressai. Não será, por isso, obra do acaso serem, nada mais, nada menos, do que cem as ocorrências de repraesentare só no De Anima III do jesuíta conimbricense, mas o esclarecimento da natureza do pensar ficaria incompleto sem abordarmos a temática do conhecimento de si – hoje talvez se preferisse dizer: o ‘sentimento de si’[77].

O conhecimento de si

Tem-se dito que o afastamento da doutrina das species, ou representação directa, permitindo a identificação do verbo mental com o acto cognitivo[78], ao retirar Deus da noética – veja-se a denotação ockhamista –, significaria a definitiva entrada de condições para que o objecto aparecesse enquanto tal[79]. Faltava dizer-se que a presentificação do objecto como forma expressa concitanos para o espaço do sujeito antes do sujeito (leia-se: cartesiano). Digamos, então, que, se é difícil depararmo-nos com o cogito no texto de Góis – seja na sua quota-parte epistémica, seja na, chamemos-lhe, quota-parte existencial –, mais fácil será encontrarmos o seu antecessor, o suppositum intelligens, que ainda não concitou a devida ponderação.


Começaremos por abordá-lo interrogando o modo como a natureza da alma humana pode chegar ao conhecimento da sua própria essência. Disse bem – ‘alma humana’ – pois, diferentemente de certa tradição latina que interrogava sobretudo nos termos do intelecto possível[80], em Coimbra, a pergunta é explicitamente: “se a alma humana, pela sua própria essência, se pensa a si mesma (utrum anima humana se per suam essentiam intelligat)[81]. Como sabemos, Aristóteles não tinha sido claro a este respeito e, a seguirmos ou I. Bywater ou D. Ross, o Estagirita nem sequer teria dito que o intelecto se pensa a si próprio (dè autòn), mas antes “por si mesmo” (di autou)[82]. Seja como for, a tradução de Argirópulo usada em Coimbra segue a lição de Moerbeke – se ipsum[83] – e os Jesuítas não podiam deixar de se inscrever nesta longa herança da psicologia do conhecimento de si e da auto-representação. Esta, convém frisar, não pode ter uma relação directa com o ‘eu’ individual moderno, porque na esteira grega, qualquer ciência, e por isso também a psicologia, só o é na medida em que o seu objecto é universal. Sendo aristotelicamente irrelevante qualquer relação com a existência do meu eu, já se lançou a hipótese de os textos precursores de Descartes se lerem não no De Anima, mas nos comentários às Sentenças e nos textos teológicos de Agostinho[84]. Mostraremos que esta interpretação merece ser revista, em parte.

Confrontemos rapidamente a leitura coimbrã de Aristóteles com a de São Tomás. Enquanto está no corpo, a alma sabe que pensa mediante actos reflexos sobre a sua própria actividade. Fá-lo-á, segundo os Jesuítas, nos quatro momentos seguintes: M1: concebe aquilo cuja espécie foi extraída dos sentidos (ex: a natureza humana); M2: reflecte sobre o seu acto, percebendo-o; M3: compreende que tem uma imagem espiritual de uma coisa corpórea; M4: acaba por perceber-se como uma dada substância imaterial participante da razão e da inteligência. É forçoso atentar-se em que, se a experiência auto-reflexiva (experitur se intelligere) pode ser equivalente “ao próprio inteligir do intelecto” (ipsum eius intelligere) da questão 87 da Suma de Teologia, neste último texto, diferentemente do de Coimbra, não se avança para M4[85]. Relembro: o momento em que o intelecto se percebe como uma dada substância imaterial (immateriali subiecto) participante da Razão e da Inteligência (agora atrevemo-nos a usar as maiúsculas).

Esta forma de o cogito se nomear nada tem da instauração cartesiana, posto que exige constantemente um regresso ou uma imersão mundana – no corpo não-glorioso a alma carece sempre dos fantasmas – no que Coimbra supõe ser uma herança aristotélica[86], mas que é afinal uma releitura mais das lições de Tomás de Aquino condicionadas por Agostinho[87]. Mais ainda: tal releitura aparece marcada pela estrutura hierárquica do mundo e do lugar do Homem nesse mundo. Recapitulemos que a imersão de que se fala é um regresso à física, ao complexo da definição aristotélica da alma de que tantas páginas coimbrãs se ocuparam, mas sem deixar de ser, também, o motivo renascentista da forma substancial concitado pelo Fédon, pelo De Anima e até pelo Asclépio.

Quando pela primeira vez propus esta interpretação Claude Panaccio interpelou-me, lembrando-me que nada de novo havia aqui se comparado com a proposta aquinatense. Julgo que a minha resposta de Agosto o satisfez. Invocando uma palavra de Michel Foucault sobre o comentário – “Só há comentário quando, sob a linguagem que se lê e decifra, corre a sabedoria de um texto primitivo”[88] – pude chamar a atenção para o facto, a meu ver nada despiciendo, de em Coimbra ser o próprio texto “primitivo” de Aristóteles a acolher o cogito augustinista!

Mas há que fazer algumas ressalvas, em todo o caso. Se é verdade que a alma que pensa se identifica realmente com a memória intelectiva, conforme se lia no primeiro título coimbrão dos Parva Naturalia[89], para que nos encontrássemos indubitavelmente com o cogito existencial augustinista só restaria agregar àquelas duas faculdades a da vontade e, v.g., descortinarmos algum eco daquela moderna palavra de Olivi segundo a qual “experimentaliter et indubitante” a alma se sente a viver, a ser, a ver, a ouvir, etc.[90]. Quem é que hoje ao lê-la não pensa no cogito existencial fragilizado da terceira Meditação? Só assim estaria definido o ternário psicológico do Bispo de Hipona – memória, inteligência e vontade – faculdades que, em qualquer caso, os Jesuítas asseveram pertencer à mesma substância da alma[91]. É curioso que em diálogo crítico com o horizonte nominalista que interpretava 413b 12 recorrendo ao princípio augustinista de que a alma é as suas faculdades (intelecto, memória e vontade) – não três vidas, nem três mentes, mas uma só que, enquanto vegetal, é alma, enquanto contempla, é espírito, enquanto sente, é sentido, sendo alma por saborear, e mente ao pensar, e razão ao discernir, e memória ao recordar, e vontade ao querer – é curioso, dizia eu, que os Jesuítas de Coimbra tenham reivindicado a autoridade de Agostinho sobre a identidade de todos os graus essenciais da alma numa só essência[92]. Melhor ainda: aproveitando o ensejo de explicarem esta segunda definição aristotélica da alma, dita existencial – à primeira, a que se lê em 412 a 20, chamam-lhe “essencial” – os autores farão ressaltar o modo inteligente (artificiose) como Aristóteles soube coordenar o método da física (dos efeitos para as causas) com o da metafísica (das causas para os efeitos)[93].

Sobressaindo, à maneira tomista da separação da matéria, de entre as três faculdades, a inteligência, um apêndice editorial sobre o estado da alma separada faz coincidir esse estado com “um conhecimento distinto”[94], um conhecimento certo ou distinto (cognitio certa atque evidens[95]), admitindo-se mesmo “poder-se conhecer com evidência” o reino da possibilidade em Deus[96]. Eis-nos perante uma expressão textual e editorial de uma reformulação já moderna do cogito de Agostinho nos finais do século XVI – uma alma (anima/mens) que se pensa a si própria (per se ipsam intelligat/per se ipsam nosse), capaz de estender o conhecimento distinto (distincte) às realidades ontologicamente afins[97].

Mas, passando por alto esta relação com o cogito epistémico, o que se nos depara, em desfecho, é uma outra tese, que me atreveria a considerar dos nossos dias, qual a de se retirar à psicologia o direito de esgotar a problemática do conhecimento de si. Adiantarei que agora uso o termo ‘psicologia’ na sua semântica mais contemporânea. Recordemos que esta grave questão “do exame ou da indagação da dignidade e da natureza da alma” chama a si simultaneamente um “nexo ontológico e cósmico”; uma capacidade de criar, entendida como um vir-ao-aparecimento (phainestai), um vir à luz (phos); e ainda a descoberta da “lei” que, “difundindo-se por todo o cosmo criado”, permite ao intelecto perceber-se como “uma dada substância imaterial participante da Razão e da Inteligência”. Em conformidade, sem deixar de sintonizar com o advento de uma certa modernidade, a última palavra dos Jesuítas de Coimbra deve antes aferir-se enquanto reclame, certamente imperfeito e frágil, de que a venerável linhagem do “conhece-te a ti mesmo”, a antropologia do radical conhecimento de si, só faz sentido na medida do acolhimento de uma cosmologia (marcada pelo desígnio criacionista), da ética (que nos torna dignos de uma vida feliz) e da teologia (que nos põe em relação com Deus e com a Verdade).

Epílogo

Se a interpretação que acabo de vos propor tiver algum peso, então, e recorrendo de novo a Farias Brito e ao seu precioso motivo da filosofia como tarefa infinita, teria de concluir que muito do que sobre o Curso Jesuíta Conimbricense se tem dito, numa floresta de tantos apaixonados preconceitos, deve acolher-se permanentemente debaixo da palavra tão sensata do vosso ilustre compatriota, que aqui gostosamente evoco, para terminar a honra que me destes: “É como se alguém subisse a uma montanha para daí lançar uma vista sobre o mundo. Ao chegar no ponto culminante, teria de verificar que tudo está por fazer…”[98]

Notas
[1] L. A. Cerqueira, Filosofia Brasileira: Ontogênese da consciência de si, Petrópolis, 2002, p. 217.
[2] Cf. Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu, In tres libros de Anima Aristotelis Stagiritae (Coimbra: António de Mariz, 1598). Todas as citações são feitas a partir desta edição e seguem a tradução de Maria da Conceição Camps (no prelo). Para uma introdução ao Curso, vd. A. M. Martins, “The Conimbricenses”, in Mª C. Pacheco e J. F. Meirinho (eds.), Intellect et imagination dans la Philosophie Médiévale / Intellect and Imagination in Medieval Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia Medieval. Actes du XIe Congrès International de Philosophie Médiévale de la S.I.E.P.M. (Porto, du 26 au 31 août 2002), Turnhout 2006, vol. 1, pp. 101-117; e também o meu “Introdução à leitura do Comentário dos Jesuítas de Coimbra ao ‘De Anima’ de Aristóteles (mediante o estudo do tema monopsiquista)” in J.L.B. da Luz (org.), Caminhos do Pensamento. Estudos em Homenagem ao Professor José Enes, Lisboa, 2006, pp. 507-532.
[3] Cf. P. Calafate, “A crítica do Positivismo em Farias Brito e Cunha Seixas”, in Id., Metamorfoses da palavra. Estudos sobre o pensamento português e brasileiro, Lisboa, 1998, p. 357.
[4] L. A. Cerqueira, Filosofia Brasileira…, p. 210, p. 236, respectivamente.
[5] Cf. P. J. J. M. Bakker, “Natural Philosophy, Metaphysics, or Something in Between? Agostino Nifo, Pietro Pomponazzi, and Marcantonio Genua on the Nature and Place of the Science of the Soul”, in P. J. J. M. Bakker & J. M.M.H. Thijssen (ed.), Mind, Cognition and Representation. The Tradition of Commentaries on Aristotle’s De Anima, Aldershot – Burlington, 2007, p. 173.
[6] Parece que o termo “psicologia” ocorre a primeira vez em 1575, na obra de Johannes Thomas Freigius, Catalogus locorum communium, mas só no século XVIII, com a obra intitulada Psychologia empirica, de Ch. Wolff (1732), ele se tornará corrente; vd. P. J. J. M. Bakker, “Natural Philosophy…”, p. 177.
[7] A. Damásio, O Sentimento de Si. O Corpo, a Emoção e a Neurobiologia da Consciência. Trad., Lisboa, 2000, pp. 358-59.
[8] A. A. de Andrade, “Introdução”, in Curso Conimbricense I. Pe. Manuel de Góis: Moral a Nicómaco, de Aristóteles. Introdução, estabelecimento do texto e tradução de A. A. de Andrade, Lisboa, 1957, pp. XVI-XVII.
[9] Cf. E. Chitas & H.A. Resende, Filosofia. História. Conhecimento. Homenagem a Vasco de Magalhães-Vilhena, Lisboa, 1990, p. 335.
[10] E. Garin, L’umanesimo italiano. Filosofia e vita civile nel Rinascimento, Roma/ Bari, 2004, p. 159.
[11] Simplicius, On Aristotle On the Soul 1, 1-2,4 (trad. J.O. Urmson, London 1995, p. 17); cf. Simplicius, In libros Aristotelis De Anima commentaria, ed. M. Hayduck, Berlin, 1882, p. 3.
[12] Cf. P. J. J. M. Bakker, “Natural Philosophy…”, pp. 151-177.
[13] Cf. M. S. de Carvalho, in São Tomás de Aquino. A Unidade do Intelecto Contra os Averroístas, Lisboa, 1999.
[14] In III De Anima… II c.1, q.1, a.6, p. 41.
[15] Cf. M. Forlivesi (a cura di), Antonio Bernardi della Mirandola (1502-1565). Un aristotelico umanista alla corte dei Farnese, Firenze, 2009.
[16] Cf. In libros Ethicorum… d. 3, q. 4, a. 2 (ed. A. A. de Andrade, Lisboa, 1957).
[17] In VIII libros Physicorum… Prooemium, q. 5, a. 1 (ed. Lugdunii, 1594).
[18] In VIII libros Physicorum… Prooemium, q. 5, a. 1.
[19] Cf. P. Griffiths, História Concisa da Música Ocidental. Trad., Lisboa, 2007, 112-13; cf. M. S. de Carvalho, “Filosofar na época de Palestrina. Uma introdução à psicologia filosófica dos ‘Comentários a Aristóteles’ do Colégio das Artes de Coimbra” Revista Filosófica de Coimbra 11 (2002), pp. 389-419.
[20] G.W.F. Hegel, Vorlesungen ueber die Geschchte des Philosophie II, Frankfurt am Main, 1971, pp. 133-34. Registe-se, embora a respeito de outro volume, uma nota do insuspeito Luís António Verney, que na sua Metaphysica regista como num dado passo do Comentário à Lógica, os Jesuítas Conimbricenses «não moveram um pedra para defenderem Aristóteles» (vd. L. A. Verney, Metafísica. Introd. e trad. de A. Coxito, Coimbra, 2008, p. 242, nota 125).
[21] A. Simmons, “Jesuit Aristotelian Education: The ‘De Anima’ Commentaries” in J. W. O’Malley et al. (ed.), The Jesuits. Cultures, Sciences, and the Arts 1540-1773, Toronto/Buffalo/London, 1999, p. 526.
[22] Cf. M. S. de Carvalho, “Filosofar na época de Palestrina…”, pp. 389-419; vd. também Id., “Aos ombros de Aristóteles (Sobre o não-aristotelismo do primeiro curso aristotélico dos Jesuítas de Coimbra)”, Revista Filosófica de Coimbra 16 (2007), pp. 291-308.
[23] Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. II: 1557-1572, ed. L. Lukács, Romae, 1974, p. 256: “In primo libro de anima, nihil est diligendi studio explicandum praeter prooemium; secundus vero liber et tertius exacte sunt praelegendi.” De referir a posição de Jerónimo Torres (1532-1611) no plano do curso dado em Roma no ano lectivo de 1561-62, ibid. 456: “Primi libri prohemium explicandum videtur. Veterum opiniones non omnino praetermittendae videntur, nam in illis confutandis Aristotelis opinio circa multa innotescit, sed perstringendae. Secundus et tertius liber accurate explicandi.” Assim também se explica por que um manuscrito coimbrão de um comentário incompleto ao De Anima (# 2399), apressadamente atribuído a Pedro da Fonseca, com data de 1559-60, dê menor importância ao livro I: In Primum Aristotelis de Anima, Scholia, Ms. 2399, fol. 9v: “Deinceps toto reliquo hoc libro veterum philosophorum opiniones de anima prosequi.” (este Comentário termina porém no Livro II (fol. 82r) e é seguido por um Comentário à Metafísica (83r – 103r) também incompleto, e interpolado (92r – 94r) por um título “De Missa”, de outra mão).
[24] Cf. M. S. de Carvalho & F. Medeiros, “Em torno do paradigma da visão no século XVI: luz, visão e cores no Comentário Jesuíta Conimbricense (‘De Anima’ II 7)” Revista Filosófica de Coimbra (no prelo).
[25] C. Park, “Organic Soul” in C.B. Schmitt et al. (ed.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy, Cambridge, 1988, 470; cf. o meu “Filosofar na época de Palestrina…”, pp. 389-419.
[26] G. E. R. Lloyd, “Aspects of the relationship Between Aristotle’s Psychology and His Zoology” in Essays on Aristotle’s De Anima, ed. M.C. Nussbaum & A. Oksenberg-Rorty, Oxford, 1992, pp. 147-167.
[27] Cf. M. S. de Carvalho, “Des passions vertueuses? Sur la réception de la doctrine thomiste des passions à la veille de l’anthropologie moderne” in J. F. Meirinhos (ed.), Itinéraires de la Raison. Études de philosophie médiévale offertes à Maria Cândida Pacheco, Louvain-la-Neuve, 2005, pp. 379-403 ; Id., “Psicofisiologia ou teologia das paixões”, in X Congreso Latino-Americano de Filosofia Medieval : De las pasiones en la filosofía medieval (Santiago de Chile, 19-22 Abril 2005; no prelo).
[28] Cf. K. Park & E. Kessler, “The Concept of Psychology”, in C.B. Schmitt et al. (ed.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy, pp. 455-463.
[29]Cf. In III De Anima … II 3, q.1, a1, p.305. In III De Anima … II, c.3, p. 310. São, vulgarmente, cinco os sentidos internos: sentido comum e imaginação (localizados no ventrículo cerebral anterior), fantasia e estimativa (no ventrículo médio) e memória (no posterior), cf. K. Park, “The Organic Soul”, pp. 470-71, pp. 480-81, p. 466 e p. 474; vd. também J. Madeira, Pedro da Fonseca’s ‘Isagoge Philosophica’ and the Predicables from Boethius to the ‘Lovanienses’. A thesis presented in fulfillment of the requirements for the degree of doctor in Philosophy. Katholieke Universiteit Leuven (pro manuscripto), November 2006.
[30] F. Suárez, Commentaria una cum quaestionibus in libros De Anima. Comentários a los libros de Aristóteles Sobre el alma, d.8, q.1, n.21, (ed. S. Castellote, Madrid, 1991, III, p. 40).
[31] Cf. E. Gilson, Index Scolastico-cartésien, Paris, 1913, pp. 266-68 e passim; A. Simmons, “The Sensory Act: Descartes and the Jesuits on the Efficient Cause of Sensation”, in S.F. Brown (ed.), Meeting of the Minds.The Relations between Medieval and Classical Modern European Philosophy, Turnhout, 1998, pp. 63-76.
[32] Cf. J. Frère, “Fonction représentative et représentation. ‘Phantasía’ et ‘phántasma’ selon Aristote” in Corps et Ame. Sur le De Anima d’Aristote, études réunies par C. Viano, Paris, 1996, p. 347: “Aristote part du niveau le plus frustre, celui que l’on rencontre chez l’animal, chez le rêveur, chez le fou: ici la phantasía renvoie à la sensation en son double versant physiologique et psychologique. Puis Aristote se dégage de cette entreprise du corps sur la phantasía, d’abord avec ce faire neuf qu’est l’activité du savant ou celle de l’orateur, mais ensuite, de façon toute nouvelle par rapport à Platon, avec l’analyse de la phantasía dans le domaine de l’art”.
[33] J. Frère, “Fonction...”, p. 341.
[34] J. Frère, “Fonction...”, p. 346.
[35] Cf. R.Descartes, Meditationes de Prima Philosophia. Epistola (AT VII 2-3); Id., Méditations (AT IX 5).
[36] Vd. M. S. de Carvalho, “La critique d’Averroès dans les Commentarii Collegii Conimbricensis Societatis Iesu In tres libros de Anima” (Génève; no prelo); cf. Monumenta Paedagogica Societatis Iesu. III: 1557-1572, ed. L. Lukács, Romae, 1974, p. 383.
[37] Cf. M. Ficino, Opera omnia, Basel, 1576; rep. Torino, 1962, 1, p. 872.
[38] A. Bernardus, Eversionis singularis certaminis libri XL, Basileae 1562, XXXII, s. 1, p. 546; cf. In III de Anima… II, c. 1, q.6, a.2, p. 76.
[39] Cf. A. Bernardus, Eversionis… XXXIII, s.2, p. 566.
[40] P. Pomponazzi, De immortalitate animae c.1, 41rb (ed. P. Pomponazzi, Tractatus acutissimi, utillimi et mere peripatetici, Venetiis, 1525; rep. Casarano, 1995) ; sobre o tema, em geral, vd. L. Casini, “The Renaissance Debate on the Immortality of the Soul. Pietro Pomponazzi and the Plurality of Substantial Forms”, in P. J. J. M. Bakker & J. M. M. H. Thijssen (ed.), Mind, Cognition…, pp. 127-150.
[41] Cf. E. Coccia, La transparenza delle immagini. Averroè e l’averroismo, Milano, 2005, p. 144.
[42] In III De Anima … III c. 5, q. 6, a. 1, p. 355.
[43] In III De Anima … III c. 5, q. 6, a. 1, p. 355.
[44] Cf. In III De Anima … III c. 5, q. 6, a. 2, p. 359. São as seguintes as 3 características das espécies inteligíveis (In III De Anima … III c. 5, q. 3, a 2, p. 334): i) imagens ou representações das coisas que podem ser pensadas; ii) princípios constituintes da intelecção conjuntamente com o intelecto; iii) inerentes ao intelecto após as retirar da natureza do acidente.
[45]R. Barthes, Sade, Fourier, Loyola, trad., Madrid, 1997, pp. 63-71.
[46]R. Barthes, Sade..., p. 70.
[47] M. Massimi, Palavras, almas e corpos no Brasil colonial, São Paulo, 2005, p. 106, p. 116, respectivamente.
[48] In III De Anima … II c.7, expl. p. 162; ibid. q.6, a.1, p. 183.
[49] I. Kant, Crítica da Faculdade do Juízo § 49. Introd., trad. e notas de A. Marques e V. Rohden, Lisboa, 1992, p. 219.
[50] In III De Anima … III c. 3, q.2, a.2, pp. 311-12: não se distinguindo da ‘vis cogitativa’, compõe, divide e constrói silogismos com termos singulares, não por influência da parte sensitiva, mas por participar da intelectiva.
[51] In III de Anima… III c. 3, textus 162, p. 198.
[52] In III de Anima… III c.3, explanatio r, p. 198.
[53] In Parva Naturalia: De memoria c.1, p.3 (ed. Olisipone 1593): “Intellectivam tradidit Aristoteles 3º De Anima cap. 4, text. 6, cum docuit animam esse locum specierum, non totam sed intellectum; de qua etiam interpretandus est D. Augustinus libro 10º De Trinitate cap. 11 cum ait memoriam, intelligentiam et voluntatem unam esse mentem, hoc est in unam eademque mente inharere.”
[54] L. Spruit, Species Intelligibilis: From Perception to Knowledge. II: Renaissance Controversies, Later Scholasticism, and the Elimination of the Intelligible Species in Modern Philosophy, Leiden New York Köln 1995, p. 291; cf. também E. Kessler, “Intellective Soul”, p. 513; cf. In III De Anima … III c. 5, q. 4, a. 1, p. 337.
[55] Cf. In III De Anima … III c. 5, q. 5, a. 3, p. 345. Cf. A. Coxito, “O Problema dos Universais no Curso Filosófico Conimbricense” Separata da Revista dos Estudos Gerais Universitários de Moçambique, vol. III, série V, Lourenço Marques 1966; A.A. B. de Andrade, “Teses fundamentais da Psicologia dos Conimbricenses” in Id., Contributos para a História da Mentalidade Pedagógica Portuguesa, Lisboa, 1982, pp. 99-141.
[56] F. Suárez, Commentaria d.9, q.3, n.3, (III 108) ; cf. também T. Aho, “Suárez on Cognitive Intentions”, in P. J. J.M. Bakker & J. M.M.H. Thijssen (ed.), Mind, Cognition…, p. 195.
[57] Cf. Henrique de Gand, Quodlibet V, q. 14 (ed. Badius, fol. 174 rV); cf. M. S. de Carvalho, A Novidade do Mundo: Henrique de Gand e a Metafísica da Temporalidade no Século XIII. Lisboa, 2001, pp. 215-217.
[58] G. de Ockham, In Sent. I, Prologus, q. 1, n. 15-3; I, 25-28, 3, n. 4-24; I, 31-32; dist. 3, q. 6, n. 4- 13, II, 492.
[59] G. de Ockham, In Sent. Adnotationes I, dist. 3, q. 14T: "Nec debet species poni propter repraesentationem. Repraesentatum debet esse prius cognitum, aliter repraesentans numquam duceret in cognitionem repraesentati, tamquam in simile. Statua enim Herculis numquam decuret me in cognitionem Herculis, nisi prius vidissem Herculem; nec etiam scire possem utrum statua sit sibi similis aut non. Secundum autem ponentes speciem, species est aliquid praevium omni actui intelligendi obiectum; ergo non potest poni propter repraesentationem obiecti".
[60] A demarcação referida acima não deixa de ser desprovida de significado, sabendo-se que o conhecimento de si também (embora minoritariamente) podia ser definido a partir do quadro do
intelecto agente: cf. D. Calma, “La connaissance réfléxive de l’intellect agent. Le ‘premier averroïsme’ et Dietrich de Freiberg”, in J. Biard et al. (ed.), Recherches sur Dietrich de Freiberg, Turnhout 2009, pp. 63-105 ; sobre o papel do intelecto agente no Comentário de Coimbra, vd. o nosso “A doutrina do intelecto agente no Comentário ao ‘De Anima’ do Colégio Jesuíta de Coimbra” in J. Fernando Sellés (ed.), El Intelecto Agente en la Escolástica Renacentista, Pamplona 2006, pp. 155-183.
[61] In III De Anima … III c. 5, q. 6, a. 2, p. 359.
[62] In III De Anima … III c. 5, q. 5, a. 2, p. 349; cf. também P. da Fonseca, Commentariorum…V, c. 28, q. 8, sec. 4, c. 1030. Cf. A. A. Coxito, “O problema dos universais…”, pp. 52-60.
[63] In III De Anima … III c. 8, q. 1, a. 1, p. 367: “…facultas intelligendi quilibet autem experitur se intelligere”. Sobre as origens deste tópico, vd. F.-X. Putallaz, La conaissance de soi au XIIIe siècle, Paris, 1991; Id., Le sens de la réfléxion chez Thomas d’Aquin, Paris 1991; Id., “La connaissance de soi au Moyen Age” Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen-Age 59 (1992), pp. 89-157. Textos em português: Tomás de Aquino. Suma de Teologia. Primeira Parte: Questões 84-89. Tradução e introdução de Carlos Arthur R. do Nascimento, Uberlândia, 2004.
[64] Cf. In III De Anima … III c. 8, q. 1, a. 1, p. 367-68. A mesma dupla função terão os sentidos, assunto acerca do qual as relações com Descartes dão que pensar, vd. A. Simmons, “The Sensory Act” passim.
[65] In III De Anima … III c. 8, q. 1, a. 2, p. 369.
[66] In III De Anima … III c.5, q. 2, a. 2, p. 373.
[67] E. Kessler, “The Intellective Soul”, p. 514.
[68] In III De Anima … III, c. 8, q. 3, a. 3, p. 381; cf. H. J. Müller, Die Lehre vom Verbum Mentis
in der spanischen Scholastik. Untersuchungen zur historischen Entwicklung und Verständnis dieser Lehre bei Toletus, den Conimbricensern und Suarez. Inaugural-Dissertation zur Erlangung des Doktor grades der Philosophischen Fakultät der Westfälischen Wilhelms-Universität zu Münster (pro manuscripto), Münster, 1968, 146, pp. 252-53. Corrijimos acima a afirmação que se lê incorrectamente no nosso artigo “Intellect et Imagination: la ‘scientia de anima’ selon les ‘Commentaires du Collège des Jésuites de Coimbra’” in Mª. C. Pacheco et J. F. Meirinhos (ed.), Intellect et imagination dans la Philosophie Médiévale / Intellect and Imagination in Medieval Philosophy / Intelecto e Imaginação na Filosofia Medieval. Actes du XIe Congrès International de Philosophie Médiévale de la S.I.E.P.M., Turnhout, 2006, vol. 1, p. 153, n. 129.
[69] Cf. D. Perler, Theorien der Intentionalität im Mittelalter, Frankfurt am Main, 2002, que distingue na species (com base In Sent. II, 17, 2, 1 ad 3) a dimensão singular (hoje diríamos neurológica) – id quo – e a dimensão universal da semelhança com X – id quod intelligitur; para a interpretação tradicional, vd., entre outros, L. Spruit, Species…, passim (L. Spruit vê-a como um quo intelligitur, a partir da Su. Theol I, 85, 2).
[70] Cf. J. Schmutz, “Un Dieu indifférent. La crise de la science divine durant la Scolastique moderne”, in O. Boulnois et al. (ed.), Le Contemplateur et les idées. Modèles de la science divine, du Néoplatonisme eu XVIIIe siècle, Paris, 2002, pp. 204-18.
[71] In octo libros Physicorum… II c.7, q.3, a.2, p. 246: “Imago expressa rei artefactae”.
[72] In octo libros Physicorum… II c.7, q.3, a.2, p. 246: “res ipsa artefacta quam mente concipit”
[73] Cf. In octo libros Physicorum… II c.7, q.3, a.2, p. 247; também: ibid. II c.7, q.3, a.1, p. 245: “Forma a qua este a, a qua effectus, ut ab agendi principio egreditur. Forma ex qua est illa, e qua res constat. Vtriusque exemplum est animus hominis, a quo intelligendi actio manat et quo simul cum materia homo componitur. Forma vero ad quam est, ad cuius similitudinem aliquid fit.”
[74] Cf. In octo libros Physicorum… II c.7, q.3, a.1, p. 245.
[75] Cf. In octo libros Physicorum… II c.7, q.3, a.2, p. 247: “Platonici, qui ex omnibus antiquitatis Philosophis maxime ideas celebrantur, appellabant eas, res ipsas a materiae commercio, et singularium concretione abiunctas.”
[76] Cf. In octo libros Physicorum… II c.7, q.3, a.2, p. 247: “Peculiariter tamen diuinis ideis attribuitur exprimere res ipsas, quia essentia divina eminenter continent hominem, verbi gratia, cuius est idea, prout ab illo est imitabilis, similiterque res caeteras et eas perfectissime repraesentat”.
[77] Cf. A. R. Damásio, O Sentimento de Si… Permitimo-nos remeter também para A. Dinis e J. M. Curado (orgs.), Consciência e Cognição, Braga, 2004.
[78] Cf. J. Schmutz, “Un Dieu…”, pp. 213-14.
[79] Cf. J. Biard, “La position d’objet dans la théorie de la connaissance de Pierre d’Ailly”, in G. F. Vescovini (a cura di), Oggetto e spazio. Fenomenologia dell’oggetto, forma e cosa dai secoli XIII-XIV ai post-cartesiani, Firenze, 2008, pp. 19-36. Vd. supra as notas sobre Ockham.
[80] Cf. J. Zupko, “Self-Knowledge and Self-Representation in Later Medieval Psychology”, in P. J. J. M. Bakker & J. M.M.H. Thijssen (ed.), Mind, Cognition…, p. 88.
[81] In III De Anima…III c.8, q. 8, a.1, p. 394.
[82] Cf. J. Zupko, “Self-Knowledge…”, p. 94.
[83] Cf. In III De Anima… explanatio h, p. 316; cf. Aristóteles, De Anima III 4, 429b 5-9; veja-se também, J. Zupko, “Substance and Soul: The Late Medieval Origins of Early Modern Psychology”, in S.F. Brown (ed.), Meeting of the Minds: The Relations between Medieval and Classical Modern European Philosophy, Turnhout, 1998, p. 94.
[84] Cf. J. Zupko, “Substance and Soul”, pp. 121-139; vd. também Id., ibid., pp. 100-101.
[85] Tomás de Aquino, Su. Theol. Iª, q.87, a.3, sol. (na tradução citada de Carlos A. R. do Nascimento, p. 215): “Por isso, o que é conhecido primeiro pelo intelecto humano é tal objecto [a natureza da coisa material]; em segundo lugar é conhecido o próprio acto pelo qual o objecto é conhecido e, pelo acto, é conhecido o próprio intelecto do qual o próprio inteligir é a perfeição.”
[86] Nomeadamente com base em Aristóteles, De Anima III 7, t. 30 (=431 a 14-20) e 8, t. 39 (=432 a 3-14): In III De Anima … explanatio, p. 363; In III De Anima … explanatio, p. 366.
[87] Cf. o nosso “Intelect et Imagination…”, pp. 155-58. O cogito augustinista lê-se em De Trin. XV 12, 21; cf. Ibid. X 10, 16; De Civ. Dei XI 26; De lib. Arb. II 3, 7.
[88] M. Foucault, As Palavras e as Coisas, trad., Lisboa, 1968, p. 51, que continua : “E é esse texto que, fundando o comentário, lhe promete, como recompensa, a sua descoberta final.”
[89] Cf. Parva Naturalia: De memoria c.1, p. 6: “Asserendum tamen est intellectum et memoriam intellectivam unamque eandemque esse animi facultatem, nec re nec speciem diversam.”
[90] Cf. Petrus Ioannis Olivi, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, ed. B. Jansen, Grottaferrata 1922-1926, q. 76; III, p. 146; q. 74; III, p. 126; R. Descartes, Meditationes… III (AT VII 34): “Ego sum res cogitans, id est dubitans, affirmans, negans, pauca intelligens, multa ignorans, volens, nolens, imaginans etiam et sentiens…”; Id. Méditations (AT IX 27). J. Schmutz detectou, no ano 1680, a entrada das fórmulas de “sentido íntimo" ou “sentimento de existência", vd. o seu “L’invention jésuite du ‘sentiment d’existence’, ou comment la philosophie sort des collèges", XVIIe siècle 59 (2007), 4, p. 613-631.
[91] Cf. In III De Anima… III c.13, q.2, a.1, p. 423. O Comentário concede apenas um certo grau de “verosimilhança” à tese da superioridade da vontade sobre o intelecto (In III De Anima… III c.13, q.2, aa. 1 e 2, pp. 423-25), distingue as duas faculdades em sentido real (In III De Anima… III c.13, q. 3, a.2, p. 428) e admite tão-só a superioridade do acto de amar no âmbito da moral (In III De Anima… III c.13, q.2, a.2, p. 426).
[92] In III De Anima… II c. 3, q. 4, a. 3, p. 117.
[93] Recordemos as duas definições - quia 413 b 12: «…aquilo pelo qual vivemos, sentimos, nos movemos e pensamos»; - e propter quid, 412 a 20: «… substância no sentido de forma de um corpo natural que possui a vida em potência.»
[94] Tractatus de Anima Separata d. 4, a.2, p. 510: “Denique naturale lumen intellectus humani separati capax est cognitionis distinctae ; ergo producibiles sunt a Deo species, quibus ea capacitas compleatur…”; cf. também M. S. de Carvalho, “Tra Fonseca e Suárez: una metafísica inconclusa” Quaestio 9 (2009) (no prelo).
[95] Tractatus… d.5, a. 2, p. 518.
[96] Tractatus… d.5, a.2, p. 517: “Animae separatae naturaliter possunt cognoscere evidenter multa possibilia esse Deo…”; ibidem p. 518: “… plerosque ab intellectu separato evidenter esse cognoscibiles…”
[97] Tractatus… d. 5, a.1, p. 515: “Anima separata tum se suosque actus internos ac potentias, tum vero alias animas distincte potest cognoscere. (…) Nimirum ut anima per se ipsam se intelligat, quod etiam expressit D. Augustinum libro 9º De Trinitate, c. 3, cum dixit mentem se per seipsam nosse, cum sit incorporea; quanquam dum corpus informat, non nisi per superadditam similitudinem id praestat, sicut superius libro 3º, c. 8, q. 7, ostensum est”.
[98] F. Brito, A Base física do espírito, Rio de Janeiro, 1912, p. 61; apud L. A. Cerqueira, Filosofia Brasileira…, p. 205.

Imortalidade da Alma e Percepção e Cognição nos Conimbricenses

João Batista Madeira (FFCLRP-USP)


Notas ao fim do texto


Introdução

Ao se ler o texto de José Benigno Zilli sobre a psicologia dos conimbricenses, nota-se que esse autor destaca de maneira muito clara a importância do V Concílio de Latrão para a história da psicologia filosófica dos séculos XVI e XVII, principalmente para os jesuítas e para R. Descartes. Porém, para compreender a relevância daquele concílio, tem-se primeiro que analisar a história da doutrina cristã da imortalidade da alma.

Na tradição bíblica, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento, é bastante difícil encontrar elementos para se sustentar que a concepção de imortalidade da alma era familiar ao judaísmo bíblico.[i] A primeira dificuldade importante se encontra logo na abordagem filológica, pois não parece haver nem no Antigo Testamento e nem no Novo Testamento um termo equivalente a ‘alma’ entendida como algo distinto de ‘corpo’. Tanto nephesh quanto psyche reforçam mais uma abordagem da pessoa humana como um todo, como alguém que tem o ‘sopro de vida’, do que uma separação entre alma e corpo.

Não é aqui o caso de se fazer um estudo exegético mais aprofundado com vistas a estabelecer se e em que medida o judaísmo do período do início do cristianismo tinha sido influenciado pelas concepções gregas ou persas, certamente muito antigas, de que a alma se separa do corpo e que sobrevive indefinidamente num outro plano. Basta aqui ressaltar que há uma distinção significativa entre a ‘ressurreição’ que aparece em algumas passagens da Bíblia[ii] e a crença na imortalidade da alma. A ressurreição ou a elevação de alguns personagens bíblicos ao céu tem três características importantes: seria da pessoa toda e não de alguma parte da pessoa; não ocorreria necessariamente depois da morte do corpo e seria algo experimentado por algumas pessoas – não uma característica geral da pessoa humana. A imortalidade da alma teria características opostas.

O que importa no momento é ressaltar que a imortalidade da alma não esteve sempre presente de maneira inequívoca na tradição cristã, pois não foi herdada do judaísmo e nem teria sido recebida de maneira natural através da influência grega[iii]. Contudo, com o passar dos séculos, a crença na imortalidade da alma se impôs como uma necessidade inescapável do pensamento cristão, principalmente no que se refere à necessidade de defender a igualdade em dignidade entre todas as pessoas, visto que esta seria condição essencial para a responsabilidade pessoal pelas próprias ações e, portanto, para a imputabilidade das boas e das más ações de uma pessoa com vistas à sua salvação ou condenação eterna.

Outra forte razão para a crença na imortalidade da alma no cristianismo está ligada à crença na presença de Deus nas pessoas, pois a revelação que chega aos ouvidos entra no entendimento da pessoa e passa a lá residir na forma de ‘verdade’. Como a ‘verdade’ possui os atributos divinos de ser única e permanente, o local onde habita a verdade na pessoa tem que permanecer, pois do contrário o caráter perecível do continente (alma humana) sairia vencedor com relação ao caráter eterno da verdade (Deus). A teologia da antiguidade e da idade média defendem justamente o contrário, ou seja, que o divino e mais nobre promove a elevação do humano e perecível ao seu patamar. Portanto, a crença na imortalidade da alma se impôs como necessária para o cristianismo.

Feitas estas considerações, fica evidenciado o fato de que no século dezesseis, como nos anteriores, as autoridades eclesiásticas viram-se na obrigação de reforçar a crença na imortalidade da alma e de exortarem os teólogos e os filósofos cristãos a provar por todos os meios possíveis que não havia incompatibilidade entre a razão e a doutrina cristã.


Atualidade do debate sobre a imortalidade da alma nos séculos XV e XVI

No Renascimento houve um interessante debate a respeito da imortalidade da alma cujas implicações epistemológicas, metafísicas e teológicas foram importantes para a história da filosofia principalmente nos séculos dezesseis e dezessete. No âmbito da metafísica a questão principal era sobre a existência ou não de algo que dá a vida aos seres humanos de tal maneira que eles adquiram um status de superioridade quando comparados com os outros animais e que tenham a capacidade de se perpetuar de alguma maneira. Se houver este algo que dá a vida, então deve haver uma alma humana que transcende o corpo perecível. Contudo, há a questão da evidencia que pode ser encontrada para postular tal entidade e o que significa para o ser humano ser um ser espiritual. Por outro lado, se a resposta para a questão inicial for que não há diferença significativa entre os seres humanos e os outros animais, o que implicaria em negar que o ser humano seja constituído por alma e corpo, então surge a questão sobre o que seria a consciência e o que seria a verdade.

De um problema metafísico se chega a um problema epistemológico. Se há verdade e se esta verdade reside na consciência, então há um intelecto que apreende a verdade. Se a verdade permanece verdade, então é lícito perguntar se o intelecto que a conhece também deve permanecer, ou seja, se o intelecto é eterno assim como a verdade que está nele permanece sempre verdade.

A questão teológica que surge neste contexto é se é Deus que cria e que mantém a verdade, sendo Ele próprio espiritual, então o intelecto na medida em que adquire a verdade tem que ser também teológico. A questão é se o entendimento humano seria, portanto ‘divino’ em algum grau. E mesmo que a questão da distinção entre mente e corpo for taxativamente negada, ainda permanece a questão dos atributos divinos da verdade (que seria eterna transpessoal e comunicável).

Mais. Se o ser humano tem algo de divino, então se coloca a questão da falibilidade e da fragilidade humana. Nesta linha, impõe-se a questão referente à possibilidade de erro de julgamento, tanto ao nível intelectual quanto ao nível moral, pois o ser humano tem que ser responsável de alguma maneira por tais erros de julgamento para ser imputável, passível de ser responsabilizado por suas boas ou más ações. Mesmo que se negue o caráter espiritual do ser humano ainda assim os princípios básicos da moralidade tem que ser de alguma maneira associados diretamente com a natureza humana.

No contexto medieval, a questão da imortalidade da alma surgia, dentre outros momentos, no debate sobre a mortalidade do corpo e a salvação da alma individual, debate este ligado às Sentenças de Pedro Lombardo. A discussão ficou ainda mais complexa com a recepção dos comentários de Averróis ao De anima nos quais ele parece negar a imortalidade da alma individual, a salvação individual e a responsabilidade humana pelas próprias ações.

Tomás de Aquino se dispôs a resolver esta dificuldade com a estratégia de dar uma interpretação correta e adequada do texto de Aristóteles e de analisar a estrutura da alma humana do ponto de vista teórico, a fim de demonstrar em que sentido ontológico e epistemológico se pode dizer que a alma de um individuo é imortal. A partir de então a abordagem teórica das questões referentes à alma humana esteve ligada à questão de como o texto do De anima poderia ser melhor interpretado. O Renascimento produziu importantes ferramentas filológicas e linguísticas que permitiram estudar de maneira mais proveitosa tanto Aristóteles quanto os demais autores clássicos. O Renascimento também se preocupou em estudar anatomia, fisiologia e as demais artes médicas, de tal maneira que houve importantes discussões sobre a anatomia e a fisiologia cerebrais e sobre as funções e faculdades da alma.

A questão da compatibilidade entre Aristóteles e a doutrina cristã que, nos séculos treze e seguintes foi central, foi perdendo força e a imortalidade da alma passou a ser discutida sob o ponto de vista das diferentes correntes teológicas. A questão epistemológica se concentrou no valor interpessoal da cognição.

No concilio de Florença (1439), o filosofo bizantino Jorge Gemisto, conhecido como Pleto, lançou um ataque ao aristotelismo latino dizendo que Aristóteles tinha sido inconsistente ao defender a imortalidade da alma no De anima mas não na Ética, e que por isso Alexandre de Afrodisias tinha postulado que o Estagirita defendia que a alma humana era mortal. As reações a este debate teriam levado Cosimo de Médici a encarregar Marsilio Ficino de tornar acessíveis as fontes platônicas e neoplatônicas. Ficino então compôs sua famosa obra Teologia Platônica. Para Ficino, o principal erro de Averróis tinha sido o de negar que a substancia do intelecto pode ser a forma que aprimora o corpo, que é a atualização da vida do corpo.


Problemas para a compatibilidade entre a razão e a doutrina cristã no século XVI

O debate sobre a imortalidade da alma seguiu naquelas linhas, em vários lugares, principalmente em Pádua, até que Pietro Pomponazzi (1462-1525) publicou sua obra Tratado sobre a imortalidade da alma, no qual ele postula que o ser humano ocupa o lugar médio entre o material e o espiritual, entre o mortal e o imortal. Pomponazzi refere-se às operações vegetativas e sensitivas da alma que ocorrem ao nível corpóreo, portanto mortais, e às operações intelectivas que operam independentemente do corpo, portanto imortais. Em si, o ser humano nem é mortal em sentido absoluto e nem é imortal em sentido absoluto.

As soluções para a ambigüidade que se segue lhe pareciam ser três:

  1. todo homem teria uma alma mortal individual e uma alma imortal universal;
  2. a alma intelectiva é uma força totalmente separada que move a alma sensitiva;
  3. a alma humana é em si imortal, mas em certo sentido é mortal.


A terceira solução seria a de Tomás de Aquino e tem como consequências de que as faculdades sensitivas e intelectivas são uma e mesma coisa (Suárez com relação ao sensus communis e a phantasia); a alma é a forma ou essência do ser humano e não uma força externa; há tantas almas quantos seres humanos individuais; a alma é colocada por Deus em cada pessoa no momento da criação daquela pessoa, mas sobrevive ao perecimento do corpo.

Para Pomponazzi, o ser humano está a meio caminho entre o mundo material e o mundo espiritual, sendo que o intelecto humano está intimamente ligado ao corpo, pois necessita dos sentidos para conhecer (necessita dos phantasmas). Como tudo isto faz com que a questão da alma não possa ser resolvida com clareza, Pomponazzi defende a doutrina averroísta da dupla verdade – uma teológica independente e distinta de outra filosófica.

As conclusões de Pomponazzi estavam em flagrante desacordo com a recomendação feita pelo quinto concílio lateranense de alguns anos antes (1513) que exortava não somente os teólogos mas também os filósofos a utilizar todos os meios para provar tanto quanto possível a verdade da religião cristã de que a alma humana individual é imortal.

Este fato histórico ajuda a explicar porque a nascente Companhia de Jesus produziu já no século dezesseis inúmeros comentários manuscritos ao De anima de Aristóteles, sendo que três daqueles manuscritos foram publicados ainda no século dezesseis – os comentários ao De anima de Francisco Toledo (1574) e dos Conimbricenses (1598) e uma sessão dedicada a pontos essenciais ligados ao De anima nos Comentários à Metafísica de Aristóteles de Pedro da Fonseca (1589).

Também parece haver novos elementos para entender melhor porque tanto Pedro da Fonseca quanto os Conimbricenses questionam em inúmeros lugares a autoridade filosófica de Tomás de Vio Caetano. A razão para a atitude crítica e a rejeição de inúmeros pontos da leitura que Caetano fez de Aristóteles da parte daqueles jesuítas estaria ligada à rejeição da leitura de Aristóteles feita em Pádua, principalmente por Pedro Pomponazzi, sendo que Caetano estudou em Pádua e tinha ligação de amizade com Pomponazzi. Em jogo neste contexto está a tradição cujo proponente principal tinha sido Averróis que consistia em pensar que pela razão, ou seja, na obra de Aristóteles, a alma humana é mortal e o intelecto agente é único para todos os seres humanos e imortal. Portanto, a imortalidade da alma humana individual somente poderia ser provada em outro contexto, ou seja, somente pela revelação é que tal prova poderia ser alcançada. Claro que Caetano nunca desposou tal posição com toda a clareza, apesar de que sua posição parece ter se alterado ao longo de sua carreira. Contudo, vários pontos de sua exposição sobre percepção e cognição propõem uma leitura que se distancia da tradição peripatética escolástica e se aproxima dos resultados obtidos pelo averroísmo e pelo aristotelismo renascentista seguidor de Alexandre de Afrodísias.


Uma preocupação mais ampla do que apenas com os aspectos filosóficos

Outro elemento interessante que surgiu com a análise do Comentário ao De anima dos Conimbricenses foi a constatação de que já na esteira do que tinha feito Pedro da Fonseca, a preocupação tinha se deslocado da análise filológica do texto de Aristóteles – a explicação do texto é uma parte muito pequena do referido Comentário – para a resposta às principais questões filosóficas e teológica suscitadas pelo De anima, ou seja, o que importaria para eles não era descobrir se Aristóteles defendia ou não a imortalidade da alma humana individual mas sim apresentar os argumentos que a razão dispõe para provar tal mortalidade. Há aqui que se ter presente que o coroamento deste libertar-se da interpretação estrita do texto filosófico deu-se nas Disputationes metaphysicae de Francisco Suárez (1597).

Para Suárez a alma não pode ser destruída, pois não é de natureza composta, cuja consequente postulação de que no âmbito do mental não há distinção entre faculdades sensitivas e intelectivas. A alma, portanto, somente poderia ser destruída por Deus. O corpo, por outro lado, é composto e por isso é perecível.

Os Conimbricenses concordam com a definição aristotélica de que a alma humana é “ato primeiro substancial ao corpo orgânico que tem vida em potência”. Como ‘ato’ entende-se que a alma não é composta, como ‘ato primeiro substancial’ é distinta das suas operações e das formas naturais dos seres não vivos. A alma é aquilo por meio do qual vivemos, sentimos, mudamos de lugar e entendemos. A alma não está toda em nenhuma parte do corpo, mas toda em todas as partes, só que não da mesma maneira, pois a vista está no olho, e a phantasia no cérebro, mas intelecto e vontade estão igualmente em todo o corpo.

A alma é forma do corpo e princípio de nossa atividade, sendo, portanto, simples, espiritual, subsistente, imortal e igual em relação às almas das outras pessoas.


A percepção na perspectiva conimbricense

O problema do papel da percepção no processo do conhecimento era considerado uma das questões centrais da filosofia escolástica. Considerando o conhecimento na sua forma mais simples, pode-se dizer que se daria através da recepção da forma pelos sentidos sem a matéria. A forma sensível, depois de passar pelo sensus communis e perder a diferença de presença, se tornava o phantasma e este posteriormente era elevado pelo intelecto e se tornava a forma inteligível.

No que concerne à faculdade sensitiva os Conimbricenses entendem que seja considerado sob três aspectos:

  1. recebe do objeto a forma;
  2. depois de receber a forma produz o ato de sentir;
  3. recebe o ato de sentir.


O primeiro e o terceiro são passivos e o segundo é ativo.

No que diz respeito à necessidade das espécies sensíveis, os conimbricenses defendem que é a espécie sensível que determina a faculdade de sentir, em si indeterminada, para que receba este ou aquele singular (Escoto, Alberto e Capreolo), somente que a espécie sensível depende para existir e permanecer da presença do objeto.

Os sentidos internos podem ser entendidos como sendo em número de quatro: sensus communis, phantasia, cogitativa ou aestimativa e memória. Porém, na verdade podem ser reduzidos a dois (como postulou Fonseca): sensus communis e phantasia. Esta última, phantasia, seria um único sentido, mas com as funções de imaginação, de cogitação e de memória. O autor do comentário ao De anima, Manuel de Góis, acrescenta que “esta nossa opinião não contradiz a doutrina peripatética”. Na sua opinião, em total acordo com Pedro da Fonseca, não podem os dois sentidos externos serem reduzidos a apenas um, como queria Suárez, e nem se pode rejeitar o sensus communis, como queria Francisco Toledo.

Os Conimbricenses também apresentam várias conclusões interessantes que não poderão contudo ser aqui detalhadas. Por exemplo, explicam que a localização dos sentidos internos é: sensus communis na parte anterior do cérebro e phantasia em todo o cérebro. Também ensinam que o conhecimento intelectual pode ser intuitivo e/ou abstrativo. Abstrativo ou de simples inteligência seria o conhecimento de qualquer coisa que não está presente. Intuitivo ou de visão seria a notícia do objeto presente enquanto presente.


Considerações

O presente artigo é na verdade um primeiro esboço dos resultados obtidos a partir da análise histórico-filosófica das obras dos jesuítas do século XVI a respeito do De anima de Aristóteles. Na medida em que o estudo for sendo aprofundado, espera-se que outros pontos interessantes apareçam. As conclusões possíveis nesta altura são: o debate em torno da psicologia filosófica dos jesuítas tem que levar em conta muitos outros aspectos além da simples análise filológica e filosófica; o tema da ‘imortalidade da alma’ é de fundamental importância para se entender a estratégia argumentativa do comentário conimbricense ao De anima; Manuel de Góis, assim como Pedro da Fonseca, tinham a preocupação de concordar suas doutrinas com Aristóteles, tanto quanto possível, e um exemplo disto é o caso do número dos sentidos internos, pois ao defenderem que seriam apenas dois acrescentaram que tal doutrina estaria em sintonia com Aristóteles, sem seguirem neste ponto o tomismo, o albertismo ou o escotismo.


Notas

[i] Julius Guttmann em seu A filosofia do judaísmo, pareceu identificar também uma crença na imortalidade da alma na Bíblia Hebraica, talvez por influência das crenças de outros povos. Na verdade ele de alguma maneira associa ressurreição e imortalidade da alma. Como suas afirmações são por demasia vagas, não há como saber exatamente a que ele se refere.

[ii] Antes do Novo Testamento, o tema da ressurreição na Bíblia surge no livro de Daniel e no segundo livro dos Macabeus, neste último caso a ressurreição é apresentada como uma esperança num contexto em que famílias inteiras eram exterminadas, impedindo, portanto, que a ‘permanência’ através da descendência e da transmissão das tradições tivesse lugar. Se até o tempo dos Macabeus não era necessário se preocupar com o pós-morte visto que terminada a existência da pessoa esta se juntaria ao seus antepassados no Sheol, ‘permanecendo’ em sua prole e nas tradições passadas de geração em geração, a partir daquela situação de genocídio o tema da ‘permanência’ individual após a morte se tornou premente.

[iii] A crença de que após a morte a sombra da pessoa iria para o Hades não equivalia a pensar numa alma individual que sobrevivesse à destruição do corpo.


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