segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Antônio Vieira e a medicina da alma. Fundamentos teóricos e aplicações na obra sermonística

Marina Massimi (USP)

Nota ao fim do texto

Premissas
Na cultura brasileira do período entre os séculos XVI ao XVIII, a prática da oratória sagrada protagoniza o processo de apropriação, articulação e transmissão de certo tipo de saber acerca do homem e da vida saudável derivado da tradição ocidental. A característica deste saber e destas práticas é a abrangência, sendo levadas em conta todas as dimensões do ser humano: corpo, alma e espírito. Nesta perspectiva, a saúde é concebida como qualidade da vida pessoal e o objetivo terapêutico é o cuidado para com a pessoa na sua integridade. Pretendemos neste texto descrever as etapas do processo formativo da concepção e da prática da palavra assim como padre Antônio Vieira a atualizou em seu ministério de pregador e na escrita de seus sermões. Para realizar esta meta, será necessário compreender Vieira no âmbito do universo cultural e religioso a que pertence.

Os jesuítas entre a psicologia filosófica aristotélica e a tradição da medicina da alma
Da matriz filosófica do aristotelismo relido por Tomás de Aquino derivam as categorias teóricas utilizadas no âmbito do saber elaborado pela Companhia de Jesus no período da Idade Moderna, para definir a dimensão psicológica da experiência humana e os fenômenos a esta relacionados. Podemos chamar convencionalmente este âmbito de saber de “psicologia filosófica” (mesmo que a terminologia não seja totalmente apropriada pelo fato de que nesta abordagem os fenômenos psíquicos são tomados num mais amplo horizonte antropológico que inclui o corpo e o espírito). Este saber foi elaborado pelos pensadores da Companhia, em obras cuja influência no contexto luso-brasileiro foi marcante: os tratados Conimbricences, redigidos pelos professores do Colégio das Artes da Companhia em Coimbra, e que, posteriormente, foram utilizados para os estudos filosóficos nos colégios da Companhia no Brasil (Barreto, 1983; Caeiro, 1982; Martins, 1989; Santos, 1955; Tavares, 1948). Os tratados são comentários das obras aristotélicas e os que mais fornecem categorias conceituais para abordar o domínio do “psicológico”, são os seguintes: o comentário ao tratado De Anima (Sobre a Alma, Gois, 1602), o comentário ao tratado Parva Naturalia (Pequenas coisas naturais, Gois, 1593a), o comentário ao tratado Etica a Nicomaco (Góis, 1593b), o comentário ao De Generatione et Corruptione (Sobre a geração e a corrupção, Góis, 1607). No âmbito dos referidos textos, algumas teses fundamentais referentes à definição aristotélico-tomista da alma humana, constituem-se nos alicerces do saber proposto. Em primeiro lugar, destaca-se a definição de alma como ato primeiro substancial do corpo, forma do corpo e princípio de atividade, definição esta que remonta à doutrina aristotélica clássica. A alma possui capacidades peculiares, que, na linguagem da dita doutrina, são chamadas de potências. São elas: a potência vegetativa; a sensitiva (a saber, a capacidade sensorial proporcionada pelos sentidos internos e externos), a locomotora, a apetitiva (sensitiva e inteletiva); e a potência intelectiva (intuitiva e abstrativa). No âmbito dos sentidos internos destacam-se: a memória, a imaginação, a cogitativa (ou vis estimativa); e o senso comum. Na realidade, as potências da alma correspondem ao que hoje a psicologia moderna define como funções psíquicas, notadamente: as funções sensoriais, as funções motivacionais e emocionais, as funções cognitivas. Todavia, na perspectiva da psicologia aristotélica, as potências não se identificam tout court com os fenômenos, ao passo de que a psicologia moderna reconhece a existência apenas dos fenômenos, tendo sido inclusive esta diferenciação o salto decisivo para o nascimento da ciência psicológica no século XIX.
Se, por um lado, a reproposição da psicologia aristotélica pelos jesuítas passa pela interpretação que dela foi realizada pelo filósofo e teólogo Tomás de Aquino, por outro, para além da continuidade com a tradição filosófica medieval, os pensadores jesuítas de Coimbra sofrem a influência das mudanças culturais que marcam o período humanista e renascentista ao qual pertencem. Deve-se a tal influência, por exemplo, o fato de que, na discussão dos Conimbricences, as teses e as questões referentes à dinâmica das potências psicológicas são abordadas no plano do comportamento humano, acarretando a interseção entre os domínios da Psicologia e da Ética. Com efeito, o Humanismo e sobretudo, a Renascença – devido à ênfase na visão do homem como fazedor de si mesmo (Cassirer, 1977; Garin, 1995) - revisitaram o pensamento ético de Aristóteles; por isto a Ética a Nicomaco (Aristóteles, 1996) foi um dos livros mais lidos e interpretados pelos pensadores daquele período, inclusive pelos intelectuais da Companhia de Jesus.
A dinâmica psíquica que dá origem às ações humanas é a resultante da interseção e interação entre a vontade, o intelecto e o desejo (o apetite). Todavia, na esteira do pensamento da época, os Conimbricences supõem que haja uma relação de dependência entre as demais potências da alma e a vontade e por isto detêm-se na análise da dinâmica pela qual a vontade move as demais potências. Para tanto, o elemento básico é a noção de desejo, que – na tradição do aristotelismo - consiste na apetição, ou seja, na inclinação de todas as coisas para o bem. Distingue-se entre o apetite inato e o apetite aprendido (elícito) – pois a ênfase na formação do homem pela educação própria dos séculos XV e XVI ressalta a importância da aprendizagem. O apetite inato distingue-se em natural sensitivo (concupiscência) e natural intelectivo (vontade).
Os Conimbricences, assim como toda a cultura do seu tempo, atribuem grande importância aos estados da alma definidos como paixões, que na linguagem da psicologia moderna correspondem às emoções ou sentimentos. As paixões são tomadas como movimentos do apetite sensitivo, provenientes da apreensão do bem ou do mal, acarretando algum tipo de mutação não natural do corpo. Neste sentido, elas dependem sempre de uma representação que o intelecto faz de um objeto, julgando-o como bom ou mau; e por isto os Conimbricences aprofundam especialmente a questão das relações entre as paixões e o intelecto. Divergindo da posição estóica que considerava as paixões como fenômenos nocivos à saúde psíquica e física do ser humano devendo portanto serem extirpadas por serem doenças do ânimo e vícios morais, os filósofos jesuítas reafirmam a função positiva das paixões – já conclamada por Aristóteles e Tomás. Com efeito, se forem ordenadas pela razão, as paixões colaboram à sobrevivência do homem e, além do mais, ajudam-no a alcançar a virtude. As paixões podem ser definidas como doenças ou distúrbios do animo apenas enquanto se afastam da regra e moderação da razão. Neste sentido compreende-se como a dimensão propriamente psicológica da sensibilidade e dos afetos, deva ser integrada pela dimensão espiritual que inclui os âmbitos da razão e da vontade.
Os Conimbricences atribuem grande importância também às questões acerca dos correlatos fisiológicos e biológicos da dinâmica das paixões, tais como: as relações entre a tristeza, o sono e os sonhos; as relações entre os sonhos e as paixões; as relações entre as paixões, o sistema cárdio-vascular e a respiração; as relações entre as paixões e a constituição psicossomática dos indivíduos (temperamento); as relações entre as paixões e as diversas idades da vida. Discutem os casos de óbitos ou de doenças induzidas por paixões de excessiva intensidade (especialmente os excessos na ira, no medo, na tristeza, ou na alegria). Analisam os efeitos somáticos de algumas paixões, tais como o empalidecer e o tremor, induzidos pelo medo, a sede e o arrepio de cabelos em decorrência do medo; as relações complementares entre diversas paixões (por exemplo, entre a ira, a tristeza, a dor e o prazer) e os nexos entre o amor e a loucura.
È nestes pontos (o cuidado com as paixões e a relação entre o espiritual, o psíquico e o orgânico) cuidado com as paixe o cmapo para aintervençr o domque, mais diretamente, abre-se o campo para a intervenção da Medicina da alma. Os saberes rotulados como Medicina da Alma ou do Animo (na terminologia da filosofia estóica) derivam de uma longa tradição que, iniciada pelos médicos-filósofos gregos, explicitada por Platão, consolidada pelo médico grego Hipócrates e posteriormente pelo médico romano Galeno, aplicada pelos oradores e filósofos Cícero e Sêneca, (para citar apenas os nomes mais conhecidos de uma longa e complexa trajetória multidisciplinar) consolidou-se ao longo da Idade Média, sendo retomada e ampliada no Humanismo e na Renascença.
A base doutrinaria da Medicina da alma é a teoria humoralista, cujas origens remontam à medicina grega e que é sistematizada posteriormente por Hipócrates e Galeno: esta teoria considera a constituição do homem determinada pela presença de quatro humores fundamentais que, por sua vez, correspondem aos quatro elementos básicos da composição do Universo. Os humores são: biles preta (melancolia), biles amarela, fleuma e sangue. A teoria estabelece uma correspondência entre a preponderância de um tipo de humor no organismo humano e o temperamento do indivíduo. Desse modo, ao excesso de bílis negra (melanê kolê) corresponde o temperamento melancólico; ao excesso de bílis amarela corresponde o colérico; ao excesso de sangue, o sangüíneo; ao excesso de água, o fleumático. Os temperamentos, por sua vez, determinam as características psicossomáticas do sujeito: sua condição orgânica bem como seus estados psíquicos (Klibansky, Panofsky e Saxl, 1983).
Baseada numa analogia entre a alma e o corpo, a Medicina da Alma pressupõe a existência de “enfermidades da alma”, ou seja, admite a especificidade da patologia psicológica, ao mesmo tempo em que a dimensão psicológica é tida como intermediária entre a orgânica e a espiritual (Crombie, 1987; Klibansky, Panofsky e Saxl, 1983). Neste sentido, o conceito de "doença da alma" repousa numa tomada de consciência médica, por tratar-se de uma doença cujos sintomas podem ser físicos e, ao mesmo tempo, filosófica, sendo a alma como um todo (não apenas a sensorial e a vegetativa, mas também a racional) o objeto acometido pela moléstia. Tal analogia é, em muitos casos, interpretada em termos de um paralelismo, em outros, como expressiva da unidade psicossomática que caracteriza o ser humano. O principio unitário da saúde é o equilíbrio, de modo que qualquer desequilíbrio, seja no corpo seja no espírito, é causa de doença. É assim que, por exemplo, um desequilíbrio no sentido de um excesso ou defeito nos movimentos do apetite sensorial (=paixão), pode provocar doenças corporais e psíquicas e também acarretar uma fragilidade do espírito. Da mesma forma, a diversidade na composição dos humores do corpo (complexão) origina diferentes temperamentos psicológicos, mas um excesso ou defeito de um ou outro humor pode degenerar em patologias psíquicas e físicas.
O filósofo estóico Sêneca, em sua obra Sobre a tranqüilidade da alma (1994) elabora um dos textos de referência desta concepção. A obra estrutura-se em forma de diálogo, como verdadeira consulta médica: o interlocutor de Sêneca, Sereno, descreve-lhe seu estado psíquico (habitus) como a um médico (ut medicus), relata em detalhe os sintomas e solicita-lhe um diagnóstico. E já na era cristã, o filósofo, teólogo e orador Agostinho de Hipona usa repetidamente a expressão “médico da alma” em vários textos e discursos, onde inclusive chama como tal o próprio Jesus Cristo, ou o pregador enquanto seu representante na terra (Discursos 360; 80; 63/a; 77; 87; 88; 156; 159; 240; 391; Homilia 7; o texto A natureza e a graça; no terceiro livro do Tratado contra Juliano; Discurso acerca do salmo 102; no tratado sobre A verdadeira religião; para citar apenas alguns dos inúmeros textos do autor onde a expressão é utilizada).
Desse modo, no universo mental e cultural do Ocidente, marcado pelo cristianismo, a Medicina da Alma assume também conotação propriamente religiosa e espiritual e começa a ser rotulada também como Medicina do Espírito.
Na mentalidade do ocidente medieval e renascentista, a Medicina da Alma corresponde à "ciência" ou à "arte de viver". Os humanistas assumem a tarefa de traduzir os conteúdos destes conhecimentos em normas da "arte do viver", e é assim que, entre outros, o humanista dálmata Marcus Marulus escreve o tratado De Bene beateque vivendi e seu mestre italiano Tideu Acciarini compõe, em 1489, o De Animorum Medicamentis (Massimi e Brozek, 1983). O médico espanhol Huarte de San Juan, formado pela Universidade de Alcalá e autor do Examen de Ingenios para las Sciencias (1574), estabelece estreita correspondência entre a Medicina do corpo, a Medicina do Animo e a construção política e social da sociedade, baseando-se no modelo da República platônica. Desse modo, a prática social funda-se na filosofia natural, sendo o corpo social estruturado em analogia com o microcosmo que é o homem (San Juan, 1989).
Os jesuítas dão continuidade a esta tradição que transmitem, inclusive em seus âmbitos de presença missionária, como o Brasil. Já nos escritos de Inácio de Loyola, fundador da Ordem religiosa, vê-se a referência freqüente a estes saberes, em função do entendimento mais profundo do ser humano e de seu destino, visando à orientação ("direção") de sua vida espiritual. Assim, por exemplo, em carta escrita ao Padre Antônio Brandão em junho de 1551, Loyola frisa a importância de que o mestre espiritual conheça o temperamento daquele que se entrega aos seus cuidados, afirmando a necessidade de “acomodar-se à complexão daquele com quem se conversa, a saber, se é fleumático ou colérico, etc (..), e isto com moderação.” (Loyola, 1993, vol. 2, p. 89).
A mesma "arte de viver" Loyola demonstra ao indicar algumas regras de convivência aos Padres Broett e Salmerón, (carta escrita de Roma, setembro de 1541):
"No trato de pessoas de qualidades insignes, procurar ganhar-lhes a afeição para maior serviço de Deus Nosso Senhor. Para isso atender primeiro ao seu temperamento e adaptar-se a ele. Se forem coléricos e falarem com vitalidade, tomar um pouco seu modo em bons e santos assuntos; para esses, nada de grave, lento ou melancólico. Mas com os sérios, lentos no falar, graves e pesados, tomar também o modo deles, porque isto lhes agrada: 'Fiz-me tudo para todos'." (Loyola, 1993, vol. 3, p. 21-22).
Cláudio Acquaviva (1543-1615), um dos sucessores de Inácio na Generalato da Companhia, foi autor, entre outros, das Industriae ad curandos animi morbos (Normas para a cura das enfermidades do ânimo, 1600; ed. 1893), destinado a todos os Superiores da Companhia visando à orientação da formação espiritual de seus discípulos. Neste texto, Acquaviva retoma a analogia tradicional entre doenças (e cura) do corpo e enfermidades (e terapia) da alma, definindo os vários tipos de doenças espirituais e os remédios necessários para cada uma, inspirando-se na tradição monástica e patrística (São Basílio, São Gregório, São Bernardo, Santo Agostinho, entre outros). O mesmo Claudio Acquaviva, em Instructio ad reddendam rationem conscientiae iuxta morem Societatis Iesu (Normas para o exame de consciência) institui oficialmente como “perpetua praxi Societatis” (Acquaviva, 1893, vol. 2, p. 257) a prática do exame de consciência, tendo função de auto-conhecimento, de prevenção e cuidado de si mesmo. Acquaviva propõe na “Instrução” um roteiro de perguntas para orientar os diretores espirituais: entre outras, uma questão visa detectar os casos em que o sujeito experimente algumas “animi perturbationes” (1893, p. 34).
A partir de Acquaviva, a expressão “Medicina da Alma” comparece sistematicamente na literatura jesuítica: trata-se de um conhecimento do ser humano e de sua dinâmica psicológica visando à adaptação deste ao contexto social de inserção (a comunidade religiosa e o ambiente em que esta desenvolve sua missão no mundo).

A pregação como terapia da alma na tradição do Ocidente cristão
O estabelecimento de uma relação precisa entre a arte de usar a palavra e a Medicina da Alma, portanto, é antigo, tendo suas raízes na relação estabelecida, desde os gregos, entre o uso da palavra e o dinamismo da pessoa humana: desde então, a palavra é reconhecida como um dos instrumentos (ou remédios) principais da Medicina da Alma.
A insistência acerca do cuidado de si mesmo, originária da filosofia socrática e herdada posteriormente pelo estoicismo e pelas filosofias cristãs, acarreta, no plano terapêutico, a importância de se cuidar de cada indivíduo. A preservação e o restabelecimento da saúde implica também na existência de um agente que cure e que acolha a pessoa, ou seja, pressupõem um relacionamento terapêutico, um lugar terapêutico. Por isto, especialmente naqueles contextos culturais onde a maioria da população é iletrada, o recurso à palavra oral, como veículo transmissor de idéias e como meio “terapêutico”, é prioritário e o pregador é identificado como o agente curador, o “médico da alma”. Vimos como, no âmbito do pensamento cristão, já Agostinho introduzira o valor terapêutico da palavra pregada, Cristo sendo rotulado como Médico da alma e a vivência cristã sendo tida por ele como a verdadeira cura da alma. Na proposta de Agostinho, formulada especificamente no texto A doutrina cristã, fundamenta-se o gênero da oratória sagrada e a prática da pregação que se desenvolve na Europa ao longo do período medieval.
Na “idade da eloquência” como foi definida a Idade Moderna por Marc Fumaroli (1980), destaca-se a profunda influência do Concílio de Trento no que diz respeito à reforma da eloqüência sagrada. O Concílio atribuíra à esta reforma uma função importante na renovação da Igreja como um todo, a eloqüência sendo elevada à dignidade sacerdotal e apostólica, em virtude do reconhecimento de que arte da oratória cristã seria o meio privilegiado de expressão e de transmissão das verdades da fé. A importância reconhecida ao gênero contribuiu ao desenvolvimento da discussão crítica e do esforço para definir os modelos, os métodos e os estilos mais adequados ao objetivo transcendente do uso da palavra na sua função reveladora do conteúdo teológico. Conforme assinala Pozzi (1997), esta busca deve ser entendida como não somente uma questão de estilo, mas como expressão do problema de fundo colocado pela própria natureza da pregação, enquanto “praedicatio Dei verbi”. Nesta perspectiva, a ênfase é colocada na finalidade do sermão (a mudança dos juízos e das condutas) e, portanto, na eficácia do verbo; “numa sintonia perfeita com a visão da retórica latina, o auditório tornou-se o centro, por volta do qual foi discutido o valor dos atos da retórica”. (1997, p. 284, trad. nossa). Assim, a palavra é trabalhada e explorada em todas as suas possibilidades tendo o objetivo de aumentar sue poder e influência nos destinatários. Desse modo, o exercício da arte retórica constitui-se como lugar de experimentação das potencialidades da palavra, sendo este processo um pressuposto indispensável para o uso da mesma com função terapêutica. Pois, na época, “diante dos efeitos das dúvidas e da fragmentação do saber, são enfatizadas não tanto as coisas a serem comunicadas, quanto as maneiras de torna-las persuasivas” (Battistini, 2000, p. 40, trad. nossa). A palavra eloqüente não apenas veicula a coisa, como induz comportamentos diante dela, associando a razão à verdade e à moralidade e chamando em causa a liberdade como condição de tal associação.
No período imediatamente precedente à época do Vieira deve-se considerar a importância das obras teológicas do pregador espanhol Luís de Granada, cujos textos foram amplamente difundidos nos séculos XVII e XVIII no Brasil e utilizados como modelos de referência e de formação dos oradores. Para Granada, a palavra do pregador é ação, na medida em que intervêm para articular a construção do corpo social e religioso, seguindo o modelo oferecido pelo próprio Criador divino através da admirável fisiologia do corpo humano. O corpo – em sua dimensão anatomo-fisiológica - constitui-se então em modelo vivente daquela unidade que, por meio da palavra, tenciona-se recompor nas almas individuais e na comunidade social e política. Este modelo perfeito, dado ao homem, o pregador pode constantemente observá-lo em seu próprio corpo, derivando desta observação, as regras e os remédios para sua cura e para o restabelecimento e conservação de sua saúde. Para Granada, este conhecimento, além de ser a glória de Deus, proporciona a terapêutica médica, pois “entendidas a qualidade e condição das partes do corpo e a dependência recíprocas entre elas, os médicos sabem aplicar os remédios” (ed. 1945, p. 248; trad. nossa). A partir do conhecimento da organização somática, Granada tira a lição moral: “Pois aplicando esta mesma ordem às coisas espirituais, entenderemos que conforme o estado ou a graça que queremos alcançar, assim nos convém nos dispor e aparelhar” (idem, p. 253).
O modelo da pregação jesuítica é rigorosamente fiel aos métodos desta tradição católica relida à luz dos decretos tridentinos e é condensado num compêndio utilizado para a formação retórica nos colégios da Companhia, a partir do fim do século XVI elaborado pelo jesuíta português Cipriano Soares, De arte rhetorica libri tres (Coimbra, 1560; 1580). O pequeno livro, devido ao seu caráter sintético, teve centenas de reedições, tendo uma difusão européia (consta nos currículos de colégios jesuítas italianos, portugueses, espanhóis, flamengos, alemães). Trata-se de uma espécie de resumo de passos derivados de Aristóteles, Cícero, e Quintilião. Com efeito, Inácio nutrido por uma sólida cultura clássica, indicara, para a formação dos noviços, diretrizes que previam a leitura direta dos grandes textos da retórica clássica, alinhavada segundo os cânones da cultura humanista. A importância dada à retórica nos colégios jesuítas é evidente considerando também o texto da Ratio Studiorum (Battistini, 2000), conjunto de textos programáticos da pedagogia da Ordem que coloca a retórica no vértice da formação, devendo ser seu ensino precedido por outros dois cursos: gramática e humanidades, considerados propedêuticos. O conhecimento dos recursos argumentativos da linguagem, segundo as diretrizes de Santo Inácio, deve ser incentivado não apenas por ser útil ao aprofundamento da exegese das Escrituras, mas, sobretudo, por ser útil ao preparo ministerial dos jesuítas. De um lado, a atividade deles se exerce quase exclusivamente pela palavra, seja a palavra oral da pregação, seja a palavra escrita da correspondência epistolar. De outro, possuir o domínio da linguagem significa possuir um poder efetivo, sendo que na sociedade da Idade Moderna, rigidamente hierarquizada, o domínio da retórica significava um marco de distinção e de prestígio. Assim, a retórica torna-se não apenas uma técnica, mas também uma visão de mundo e um método de formação e cura da pessoa.
A concepção jesuítica da arte da palavra transmitida por Soares funda-se na concepção ciceroniana da língua enquanto forma transmitida na qual é custodiado o conteúdo da civilização herdado, por ser a palavra tomada como funcional à verdade, seja no nível gnoseológico, seja no nível psicológico e moral. Esta visão fundamenta todo o projeto da oratória sagrada na tradição iniciada por Agostinho no De doctrina christiana e apoiado pela tradição patrística e humanista. A palavra encarnada na elocução penetra os ânimos e atinge o plano moral, tornando-se assim ética. A penetração da palavra no plano anímico é o que permite sua potência ética. Nesse sentido, ela age no dinamismo psíquico e também cura os distúrbios da alma, para poder realizar plenamente seu objetivo terapêutico, ou seja, a salvação integral da pessoa humana. Assim, a palavra eloqüente não apenas veicula o conhecimento do objeto e mobiliza o psiquismo do sujeito, mas sugere também comportamentos diante dele. Os elementos da palavra não são apenas os conteúdos veiculados: segundo Quintilião e Cícero, voz e gesto são importantes canais de comunicação. À voz é reconhecida a capacidade de movere os ânimos.
Para delinear muito brevemente o processo pelo qual a palavra se torna eficaz, acima assinalado, cabe dizer que seu alicerce é a metafísica do conhecimento de Tomás, segundo a qual “Nihil est in intellectu quod prius non fuerit in sensu”, ou seja o homem só pode conhecer a partir dos dados sensíveis, obtidos pelos sentidos externos. Este percepto, por sua vez, é processado pelos sentidos internos (fantasia, potência cogitativa, memória, senso comum) como fantasma. A potência cogitativa é ratio particularis, uma espécie de continuação do espírito na sensibilidade, pois manifesta nesta o universal. Assim, mesmo que ela pertença ao âmbito do pre-racional, apresenta-se já orientada para o universal, de modo que a sensibilidade é ela também plasmada pelo espírito. Na continuidade entre sensibilidade e intelecto, a potência cogitativa é o meio onde o espírito e a sensibilidade unem-se para formar um único conhecimento humano. Pois, o pensamento humano - enquanto permanece num corpo não glorioso -, necessita sempre de voltar ao sustento do sensível e do fantástico, para entender: “Nostra assertio haec esto. Anima coniucta corpori non glorioso, saltem, dum communes sive ordinarias intellectiones administrat, necessario speculatur phantasmata.” (Comm. Coninbr. De Anima, lib.3, cap. 8, q. 8, a 2). Segundo os Conimbricences (Idem, cap. 13, q.1, ª3.n.3), a vontade pressupõe o conhecimento, mas também depende do apetite sensitivo o qual, por sua vez, segue a fantasia: “voluntas rationis ductum sequitur, appetitus sensitivus immaginationem sive phantasiam”. De modo que a unidade alma-corpo faz com que a esfera especificamente psicológicas e pre-racional dos apetites e das paixões interfira, profundamente, seja no conhecimento, seja no posicionamento da vontade (livre arbítrio). A vontade, por sua vez, pode também agir sobre os apetites, para orienta-los e disciplina-los, tratando-os como “cives” da alma e não tanto como servos, sendo estes submetidos ‘politicamente’ e não de maneira “despótica’. A palavra ouvida é assim um percepto que é processada pelos sentidos externos e internos, alcança o intelecto e solicita a vontade.
Uma aplicação desta concepção da palavra são os Exercícios espirituais, cujo método é baseado na força da palavra, construída não apenas na base da argumentação lógica mas também na mobilização da imaginação, da memória, das paixões, dos sentidos e do corpo (Loarte, 1570).
Estes são, portanto, os alicerces conceituais da tradição jesuítica a que Vieira pertence, pelos quais a palavra pregada pode ser realmente considerada um remédio para a alma, no sentido de ter o poder de ordenar e dispor o dinamismo anímico ao seu fim último .
Na cultura brasileira, esta abordagem encontra terreno fértil pois já na tradição indígena, este recurso era amplamente valorizado em sua conotação de cura: desde o século XVI, os relatos e cartas dos viajantes e missionários ressaltam a função taumatúrgica atribuída à palavra, pelos nativos (Massimi, 2005).

O pregador como médico da alma segundo Vieira
A qualidade peculiar da medicina da alma de competência do pregador é ilustrada por Vieira no Sermão do Evangelista São Lucas, tido como santo padroeiro dos médicos, pronunciado na Santa Casa da Misericórdia, em data desconhecida. Vieira retoma a figura do Christus medicus que vimos ser amplamente utilizada por Agostinho, enquanto modelo de humanidade para os diferentes tipos de médicos do auditório. Vieira afirma que os Apóstolos tornaram-se pregadores armados de um duplo poder sobre a vida: o de conservar e estender a existência temporal e o de prometer e assegurar a vida eterna. Vieira diferencia entre o poder da cura milagrosa dos enfermos e o da ciência medica e adverte que falará não só da medicina sobrenatural, como também, da “medicina natural e humana” (Vieira, 1993, vol. 3, p. 853), pois ambas pertenceram também ao ministério dos Apóstolos, os quais ministravam seja os remédios naturais da terra que os sobrenaturais do Céu. Vieira narra aos ouvintes a história desse duplo poder colocando que após o pecado original e os seus efeitos (o impedimento aos homens do acesso á arvore da vida no Paraíso), Deus fez plantar fora do Paraíso outra arvore da vida “que com seus frutos recuperasse aos homens a saúde” (p. 855), ou seja, a ciência médica, guardada por um “querubim”: o médico. Todavia, o conhecimento médico segundo Vieira tem seu limite no fato da medicina ser uma “ciência conjetural”, “que cura e não vê, e nesta conjectura não só se pode enganar o discurso, mas até a mesma experiência se engana” (p. 866); por isto em muitas culturas, houve recurso dos médicos às artes mágicas, “uniram a ciência mágica com a médica, para que o que não podia alcançar a medicina conjeturando, suprisse a magia adivinhando” (p. 867). Vieira distingue a ameaça à saúde temporal dos riscos que corre a saúde eterna: se no primeiro caso, a solução é a cura da enfermidade, no segundo exige-se o “desengano”: o verdadeiro médico deve saber que a morte iguala homens e reis e que a saúde eterna depende do bom juízo e das ações nesta vida. Neste ponto, evidencia o limite da arte do medico do corpo e a importância da figura do médico da alma. Este tem por objetivo de seu trabalho a salvação e por instrumento a palavra: a palavra pregada promove a saúde eterna, e não a temporal, apresentando-se como medicina de cada alma, orientando-a para que cuide de seu próprio destino, aprendendo a arte de bem viver e de bem morrer.
Com efeito, o pregador reúne em si um leque de competências múltiplas, destinadas ao cuidado e à cura, atuantes de modo unitário, por serem sempre atentas à unidade do sujeito portador de saúde e da exigência de cuidado, de modo a abranger as dimensões do somático e do mental, da saúde física e da saúde mental. Não lida apenas com almas, mas também com corpos, entendidos no plano individual, social e cósmico. O que explica a dupla função que o modelo exemplar da oratória sagrada luso-brasileira, padre Antônio Vieira, atribui ao pregador.
Por um lado, no Sermão da Sexagésima pregado em 1655, na Capela Real, após regressar da missão em São Luís do Maranhão, Vieira define o pregador como um “médico das almas”, pois o efeito do sermão não deve ser o deleite dos ouvintes, mas a cura deles:

"A pregação que frutifica, a pregação que aproveita, não é aquela que dá gosto ao ouvinte: é aquela que lhe dá pena. Quando o ouvinte a cada palavra do pregador treme; quando cada palavra do pregador é um torcedor para o coração do ouvinte; quando o ouvinte vai do sermão para cada confuso e atônito, sem saber parte de si, então é a pregação qual convém, então se pode esperar que faça fruto" (2001, p. 51).

Por outro lado, em sermão de 1669, proferido diante da Capela Real de Lisboa, na terceira quarta-feira da Quaresma, Vieira apresenta o pregador como o verdadeiro médico das chagas do corpo espiritual mas também do corpo social e político:
"E quem não houvesse até agora no púlpito, quem tomasse por assunto a consolação desta queixa, o alívio desta melancolia, o antídoto deste veneno, e a cura desta enfermidade? Muitos dos enfermos bem haviam mister um hospital. Mas à obrigação desta cadeira (que é de medicina das almas) só lhe toca disputar a doença, e receitar o remédio. E se este for provado, e pouco custoso, será fácil de aplicar" (2001, p. 101).
Com efeito, na antropologia cristã, a salvação individual sempre é articulada à salvação do próximo; o desejo de se salvar a si mesmo, salvando os outros é um dos objetivos da empresa missionária (Massimi e Prudente, 2002). Neste sentido, a palavra, em sua conotação revelativa do mundo real, é concebida por Vieira, como o “fármaco” eficaz e definitivo para o bem dos corpos individuais animados pela alma racional, bem como dos corpos sociais animados pela vida do espírito de Deus. O poder do verbo ao mesmo tempo cria a comunidade eclesial (o corpo místico) e a comunidade política (a Res-pública: corpo do Rei e corpo do povo). A dimensão política da palavra pregada é evidente, por exemplo, no Sermão pregado na Terceira Quarta Feira de Quaresma de 1669, na Capela Real, onde Vieira estabelece uma analogia entre as crises do Estado, entendido como corpo político e social, e as patologias do corpo humano. Outra analogia entre a condição da vida política e o estado de saúde do corpo é colocada por Vieira no Sermão da Visitação de Nossa Senhora de 1640. Assinalando que “origem” e a “causa original das doenças do Brasil” são o roubo, a cobiça, os interesses de ganhos e conveniências particulares, que impedem o respeito da justiça e determinam a perdição do Estado, o jesuíta exclama: “Perde-se o Brasil, senhor, porque alguns ministros de Sua Majestade não vêm cá buscar nosso bem, vêm cá buscar nossos bens” (Vieira, 1993, vol. I, p. 1230). A terapia por ele recomendada então é moldada em analogia com as terapias de medicina do corpo:
"Assim, como a medicina, diz Filo Hebreu, não só atende a purgar os humores nocivos, senão a alentar e alimentar o sujeito debilitado: assim a um exercito e republica não lhe basta aquela parte da justiça, que com o vigor do castigo a alimpa dos vícios, como de perniciosos humores, senão que é também necessária a outra parte, que com prêmios proporcionados ao merecimento esforce, sustente e anime a esperança dos homens" (idem, p. 1222).
Um exemplo da eficácia terapêutica da medicina da alma exercida pelo pregador é oferecido por Vieira no Sermão da Quarta Dominga depois da Páscoa pregado em São Luis do Maranhão (1993, vol.2, pp. 761-803), onde Vieira aborda a questão da tristeza. Ao retratar a experiência dos discípulos após o apartamento e a morte de Cristo, descreve-s como acometidos pela tristeza: “Ficaram como atônitos e fora de si, e penetrados de uma tristeza tão profunda que juntamente os emudeceu a todos, sem haver quem dissesse uma palavra” (p. 762). E promete pelo sermão revelar “uma arte muito certa, muito útil, muito agradável e muito breve, que é a arte de não estar triste” (idem). A importância desta arte é ressaltada pela afirmação da tristeza ser “a enfermidade mais universal, que padece neste mundo a fraqueza humana” (p. 763) e “não só mais contrária à saúde dos corpos, senão também a mais perigosa para a salvação das almas” (idem). A universalidade desta enfermidade, segundo Vieira, depende do fato de não haver nenhuma terra “tão sadia e de ares tão benignos e puros, que não esteja isenta deste contágio e nenhum homem tão bem acomplexionado de todos os humores, que quase habitualmente não esteja sujeito aos tristes acidentes da melancolia” (idem). Desse modo, Viera explicita a matriz hipocrático-galenica de sua teoria da tristeza: o desequilíbrio entre os elementos da natureza e os humores do corpo humano. O sintoma da universalidade da tristeza é o choro, sintoma que todo ser humano apresenta ao nascer. Mas já neste ponto, Vieira supera a matriz médica desta concepção ao colocar a etiologia da tristeza não no plano da “natureza, senão da culpa” (idem). E também, logo em seguida ao tratar dos efeitos nocivos da tristeza para a saúde dos corpos, declara que não os comprovará pelos “aforismos de Hipócrates ou Galeno, mas com textos expressos todos do Espírito Santo” (p. 764), ou seja, pela sagrada escritura. Ao fazer isto, evidentemente, procura superar o determinismo humoralista presente em várias posições da medicina de sue tempo e atribuir à arte da pregação a competência do cuidado do homem em sua totalidade. Vieira aponta que os efeitos somáticos patológicos da tristeza são descritos no capítulo décimo sétimo do livro dos Provérbios, onde se diz que a tristeza seca os ossos, sendo estes as partes mais sólidas, interiores e duras do “edifício humano”. De modo que acometido pela tristeza, este não tem como se sustentar, pois é ressecada a umidade necessária para o calor vital. E novamente citando as sagradas escrituras (textos da Apocalipse e do Eclesiástico), Vieira descreve o quadro clínico de um sujeito que sofre os efeitos físicos e psicológicos da “melancolia venenosa e oculta, que a passos apressados leva o triste à morte”:
"Descorado, pálido, macilento, mirrado; as faces sumidas, os olhos encovados, as sobrancelhas caídas, a cabeça derrubada para a terra e a estatura toda do corpo encurvada, acanhada, diminuída. E se ele se deixasse ver dentro da casa, ou sepultura, onde vive como encantado, vê-lo-íeis fugindo da gente, e escondendo-se à luz, fechando as portas aos amigos, e as janelas ao sol, com tédio e fastio universal a tudo o que visto, ouvido, ou imaginado, pode dar gosto" (1993, p. 765).
Segundo Viera, a melancolia, ao se depositar em excesso no coração, provoca nele inúmeras feridas: retomando, sem citar, a teoria galênica de que o coração é órgão central do organismo humano de onde “saem todos os espíritos vitais que se repartem pelos membros do corpo” (p. 766), é possível explicar o motivo pelo qual a tristeza leva à morte. Com efeito, os venenos mortais da melancolia são levados pelos espíritos vitais que saem do coração ao corpo todo e em todas as suas partes produzem feridas que aos poucos se tornam letais:
"Ferem a cabeça e perturbando o cérebro lhe confundem o juízo; ferem os ouvidos, e lhes fazem dissonante a harmonia das vozes; ferem o gosto, e lhe tornam amargosa a doçura dos sabores; ferem os olhos, e lhe escurecem a vista; ferem a língua, e lhe emudecem a fala; ferem os braços e os quebrantam; ferem as mãos e os pés, e os entorpecem; e ferindo um por um todos os membros do corpo, nenhum há que não adoeça daquele mal” (1993, p. 766).
Todavia, os efeitos mais graves da melancolia ocorrem no nível anímico e a morte que ela acarreta na alma é a própria separação de sua vida, ou seja, de Deus. Realiza este efeito criando uma predisposição para o pecado. E citando a doutrina a respeito dos Padres da Igreja, os teólogos Basílio e de João Crisostomo, Vieira explica que “Esta fortíssima e escurissima paixão afoga a lama, e assim como os que padecem vertigens na cabeça caem, assim ela por falta de juízo e conselho faz que caiam os homens no pecado”. (p. 767). De fato, a tristeza impede o bom funcionamento do entendimento e da vontade, provocando, portanto, desordem em todo o dinamismo psíquico. De modo que inclusive na natural busca do remédio, o indivíduo acometido pela tristeza não sabe julgar o que lhe é oferecido como tal, sendo, portanto, mais fácil alvo das tentações do demônio. O valor dos objetos é distorcido, bem como a avaliação das próprias capacidades, de modo que, na busca de alivio, o indivíduo usa de recursos que pioram sua condição e constrói imagens que não correspondem à realidade criando ilusões.
Os remédios da “arte de nunca estar triste” sugeridos por Vieira, colocam-se todos no plano anímico-espiritual e se condensam todos na capacidade reflexiva do homem acerca de seu destino “Nestas duas palavras: Quo vadis?, nesta pergunta tão breve e nesta única máxima ou preceito consiste a arte de nunca estar triste” (p. 772). Pois, o homem que faz esta pergunta a si mesmo e “vê que com os passos do tempo, que nunca para, vai sempre caminhando para a sepultura; ou já deixa detrás das coisas, ou mete debaixo dos pés tudo o que costuma entristecer aos que isto não consideram” (p. 774).
A perspectiva com que Vieira considera o fenômeno da tristeza mantém grande semelhança com a descrição e interpretação propostas por Dom Duarte no Leal Conselheiro. (1458/1998). Ao mesmo tempo, podemos assemelha-la também à abordagem existencialista, onde a consideração da temporalidade do humano viver molda o juízo acerca de significados, valores e objetivos dados pelo sujeito à sua vivência: este é o remédio eficaz contra os efeitos nocivos da melancolia e, sobretudo, a possibilidade de preveni-los. Com efeito, vimos como segundo a doutrina humoral, os excessos do humor melancólico são causados por vários fatores acentuados pela intemperança dos hábitos. Desse modo, a moderação que nasce do desengano da vaidade humana praticado cotidianamente tendo “diante dos olhos” a própria condição mortal, é a verdadeira medicina. Assim, o indivíduo adquire o verdadeiro conhecimento de si mesmo (“entendam as almas que são almas e que o fim para o qual foram criadas e para onde caminha é o Céu”, p. 790)
Nesse sentido, fica clara a tentativa de Vieira reconduzir os desvios psicossomáticos a raízes ontológicas e éticas deslocando assim o campo da Medicina da Alma para aquelas áreas de competências de natureza espiritual e psicológica que pertencem propriamente aos pregadores os quais, como ele mesmo afirma em outro sermão, são os verdadeiros “médicos da alma”.
O uso da pregação como exortação ao conhecimento da si mesmo enquanto remédio para a alma, encontra seu modelo num conjunto de Sermões de Antônio Vieira (1993, vol.5), que inclusive irá se constituir num marco de referência para os demais pregadores brasileiros, ao abordar o tema[1]. Trata-se do conjunto de sermões “As Cinco pedras da funda de Davi em cinco discursos morais”, elaborados em 1676. No primeiro dos discursos, Vieira mostra a importância do conhecimento de si mesmo: afirma que, de modo diferente da opinião comum, pela qual “as obras são filhas do pensamento ou idéias, com que se concebem e conhecem as mesmas obras, neste mundo racional do homem, o primeiro móbil de todas as nossas ações é o conhecimento de nós mesmos”. E reitera: “eu digo que são filhas do pensamento e da idéia, com que cada um se concebe, e conhece a si mesmo. O conhecimento de si mesmo, e o conceito que cada um faz de si, é uma força poderosa sobre as próprias ações” (1993, vol. 5, p. 607).
Este conhecimento revela a natureza do ser humano: “O Homem é um composto pouco menos que quimérico formado de duas partes tão distantes como lodo e divindade, ou quando menos um sopro dela” (p. 612). Qual será então o verdadeiro conhecimento de si mesmo? Responde Vieira que é aquele capaz de reconhecer a essência do ser do homem, que o diferencia dos demais seres vivos e animados. Neste sentido, afirma que “é conhecer-se e persuadir-se cada um, que ele é a sua alma” (idem). A alma corresponde, portanto, a substância imutável do ser humano: "sou alma, porque o fui, porque o hei-de-ser, porque sou”(p. 607). Por isto, esta é para o ser humano, o melhor espelho de si mesmo. Considerar apenas a parte corporal do homem significa reduzi-lo à mera dimensão animal. Proclama Vieira: “eu sou a minha alma” e, portanto, “quem se conhece pela parte do corpo ignora-se, e só quem se conhece pela parte da alma se conhece” (p. 613). Todavia, esta visão não implica uma negação da corporeidade enquanto elemento constitutivo da pessoa. Com efeito, o pregador justifica suas afirmações baseando-se no ponto de vista da filosofia aristotélico-tomista, segundo o qual a essência de cada ser corresponde ao que ele tem de peculiar com relação aos outros seres. No caso do ser humano, a alma é “o que o distingue e enobrece sobre todas as criaturas da Terra” (idem), ao passo de que o corpo humano não especifica o ser do homem, sendo substancialmente semelhante ao dos demais animais: “quem vê o corpo, vê um animal; quem vê a alma, vê ao homem” (p. 615). Por isto, o pregador-médico da alma que dela tem este conhecimento, “vê o homem” e concorre a este conhecimento com a “luz da doutrina”.
Em conclusão, na perspectiva teológica de Vieira exercida através do ministério da pregação, a palavra do pregador, iluminada pela graça divina e pelo testemunho coerente de sua própria vivência, é oferecida como guia seguro, através dos tempos litúrgicos e profanos e das circunstâncias pessoais, sociais e políticas, para todo homem desejoso de aventurar-se no caminho do conhecimento de sua verdadeira natureza e, sobretudo, de sua realização, conforme seu destino último.

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[1] O fato de que outros pregadores, ao abordarem o tema do conhecimento do homem remetam-se a este conjunto de sermões As cinco pedras de Davi, é documentado, dentre outros, pelo discurso do frade menor frei Joseph dos Santos Cosme e Damião (Lisboa, 1753), da Bahia, que retoma os sermões do grande jesuíta, afirmando que as cinco pedras simbolizam “cinco considerações que deve ter o homem, a saber: o conhecimento de si mesmo, a dor do perdido, o pejo do cometido, o temor do castigo e a esperança do gozo eterno”(p. 316).

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