domingo, 16 de agosto de 2009

A Mente e o Conhecimento de si em Tomás de Aquino

Leonardo Almada (Cefib/Unesp)

Intitulada De Mente, in qua est Imago Trinitatis, ou seja, Sobre a mente, na qual está a imagem da Trindade Divina, a décima das Questões Discutidas sobre a Verdade, de Tomás de Aquino, é sem dúvida parte integrante de um dos momentos mais marcantes da história da filosofia no Ocidente, inclusive, e sobretudo, por sua capacidade de lançar luz sobre a constante e reiterada tentativa de formulação de uma ciência do espírito. Sob esse ponto de vista em particular, cumpre ressaltar a significação dos artigos I, II e III, em cuja intenção de pesquisa da natureza da mente está claramente suposta a concepção agostiniana segundo a qual é a mente uma conjunção harmônica de memória, inteligência e vontade. Tal compreensão, que, como sabemos, remete ao De Trinitate de Agostinho, é também essencial para a fundamentação do modelo de mente que perpassará, quase sem alterações, a filosofia moderna, como comprovam as teses modernas que atribuem os aspectos perceptivos, cognitivos, afetivos e morais da vida humana à mente, ou mesmo as que definem o espírito ou consciência como inteligência e liberdade. A questão que dá origem a suas indagações é a seguinte: a mente, que é sede da imagem da Trindade, é a própria essência da alma ou uma de suas potências? Esta questão, também levantada em sua Suma Teológica, apresentar-se-á, em linhas gerais, de acordo com a seguinte resolução: na mesma medida em que congrega em si a memória, a inteligência e a vontade, ou seja, na mesma medida em que conjuga apenas os aspectos cognitivos, perceptivos, afetivos e morais do homem, é a mente uma das potências ou um dos conjuntos potenciais da alma. Inserindo-se claramente no agostinismo que perpassa o aristotelismo medieval, Tomás considera o intelecto como a parte superior da mente e, por isso mesmo, considera-o como a primeira sede da imagem da Trindade no homem, na medida em que criado à imagem e semelhança de Deus.

Assumindo a concepção agostiniana de que o homem não é corpo nem alma — mas um conjunto substancial de corpo e alma —, Tomás atribui à alma o espaço de “ato do corpo”: é neste sentido que a alma se apresenta como um conjunto de potências as quais se apresentam de acordo com as mesmas relações que a alma, a forma substancial, guarda com a matéria. Antecipando-se em relação a seu tempo quanto às relações entre alma e corpo ou mente e cérebro, Tomás assumiu a percepção de que a alma se põe em ato por sua (i) parte ou potência nutritiva ou por sua (ii) potência intelectiva. Pela primeira, a alma age por via natural, consoante as condições impostas pela matéria, e nesse sentido sua liberdade é restrita, pois os processos sensitivos oferecem contínua resistência às deliberações humanas, ou mesmo modelam as possibilidades de deliberação. Pela segunda, a alma transcende a matéria e as condições materiais, e é nesse sentido que se impõe a analogia trinitária de Agostinho. Pela potência intelectiva, a mente se torna sede da imagem da Trindade na mesma medida em que três condições coexistem, isto é, apenas na medida em que existe, vive e entende.

Diante da tese agostiniana no livro X do De Trinitate consoante a qual a memória, a inteligência e a vontade são uma mente, uma essência, uma vida e, portanto, diante da possibilidade de poder provisoriamente concluir que assim como a vida pertence à essência, também a mente pertence à essência, Tomás considera, no entanto, que o sujeito ou substrato não se predica do acidente. Ora, se a mente se predica da memória, inteligência e vontade, que são na essência da alma, assim como o são no sujeito, a mente não é então a essência da alma. A resolução que Tomás oferece para o conflito entre as ideias de mente como essência ou conjunto potencial da alma é a seguinte: se viver acrescenta ao existir, assim como o entender ao viver, a perfeita razão de imagem da Trindade na mente depende do fato de que a criatura exista, viva e entenda. Na assimilação da imagem da Trindade, a mente tem o lugar da essência divina nas figuras da memória, inteligência e vontade, que ocupam, assim, o lugar das três Pessoas. A consideração da mente como essência da alma em Agostinho deve ser, portanto, relativizada, pois na verdade “assinala à mente aquelas coisas que se requerem para a imagem na criatura, quando diz que ‘a memória, a inteligência e a vontade são uma vida, uma mente, uma essência’” (De mente, I, §5). Em nós, diferentemente de Deus, existir, viver e entender não é o mesmo, mas são ditas uma essência na mesma medida em que procedem de uma essência da mente, ou seja, enquanto se compreendem sob uma mente, como partes sob o todo, assim como a visão e a audição são compreendidas como parte da alma sensitiva.

A segunda questão é também crucial para compreendermos como Tomás de Aquino estrutura a hipótese de uma ciência da alma. Há memória na mente? Sem dúvida, de tal questão Tomás poderá depreender uma mais sofisticada moldura da mente humana no âmbito das relações entre o intelecto agente e o intelecto paciente com as imagens materiais e com as imagens imateriais. No artigo I, e por ocasião de duas etimologias para a palavra mente, Tomás se refere às funções de lembrar e de medir. Ao receber o conhecimento sobre as coisas, o intelecto as mede em relação a seus princípios. Neste sentido, o reconhecimento da função de medir como função do intelecto é de aparente simplicidade. A questão que ganha destaque é, pois, a seguinte: em que sentido se pode dizer que o intelecto, a parte mais elevada da mente, se lembra? Em outras palavras, como Tomás compreende a memória? Contra a concepção que caracterizará a resolução tomasiana, é possível alegar que a memória não é algo “próprio do homem”, na medida em que parece pertencer ao sensitivo, e não ao intelectivo. Ademais, a memória pode reter imagens sem que, para tanto, exista um aprendizado simultâneo, o que talvez seja um indicativo de que a memória não esteja na alma. Contrariando tais postulados, porém, Tomás recorre mais uma vez a Agostinho quanto à ideia de que o intelecto se projeta sobre si mesmo, isto é, o intelecto não só entende, mas entende que entende. A memória açambarca, em um sentido especial, o “poder conhecer que conhece”. Retomando de maneira fiel a concepção de memória e tempo que caracteriza a posição agostiniana dos livros X e XI das Confissões, Tomás não deixa de reconhecer o caráter “presente” da memória: a memória pode ser do presente no mesmo sentido em que o conhecimento e rememoração do passado supõem o papel atual do intelecto. No presente, o intelecto, sabendo que sabe, pode se projetar sobre imagens assimiladas no pretérito, em vista de reorganizá-las no estado atual, tendo, obviamente, o presente como referência. Da mesma forma que Aristóteles considerou a alma como o lugar das espécies, isto é, dos inteligíveis que permanecem no intelecto possível após a consideração atual, em Tomás é a memória a força de retenção dessas espécies inteligíveis, sendo a ordenação das espécies o “hábito da ciência”. A memória é sempre presente a si mesma, e sua força memorativa diz respeito à simples possibilidade de ter algo em ato. Ou seja, ainda antes de receber as espécies dos sentidos, a memória já é presente a si mesma , assim como Deus é presente nela.

No artigo III, Tomás prossegue a discussão apoiado em suas considerações anteriores, a partir das quais discutirá as relações entre memória e inteligência. Memória e inteligência são duas potências distintas? Sem dúvida, de tal discussão Tomás poderá adquirir um framework ainda mais elaborado da alma, isto é, uma concepção ainda mais distintiva da ciência da alma. Neste caso, a fidelidade à concepção agostiniana depende, em grau elevado, da afirmação da memória e inteligência como potências distintas. No entanto, é nesse momento que Tomás parece superar a originária trilogia de Agostinho. De imediato, há dois princípios tomasianos que configurarão a originalidade de seu equacionamento e de suas resoluções. O primeiro: o intelecto, como parte superior da mente, é mais apto a ser imagem da Trindade. O segundo: se Deus é puro ato, sem mescla de potência, a mente o significa mais propriamente enquanto está em ato, e não em hábito. Para afirmar a analogia da mente com a Trindade das Pessoas, é preciso considerar uma correspondência entre as potências da mente, de tal forma que se afirme uma unidade de operações entre a potência apenas em nível lógico, e não em nível real. Para afirmar a analogia da mente com a Trindade das Pessoas em sintonia com a perspectiva agostiniana, Tomás recorre às duas analogias agostinianas: mente-conhecimento-amor e memória-inteligência-vontade. A analogia entre a mente e a Trindade das Pessoas ainda pode ser considerada a partir da perfeição ou imperfeição em que se estrutura a imitação: enquanto a mente opera em ato, isto é, o que faz quando se lembra, entende e quer em ato, temos uma imitação perfeita da Trindade. Quando, porém, estamos no nível dos hábitos da alma, a imitação se expressa consoante o modo imperfeito. Mente, conhecimento e amor são hábitos existentes na alma. O conhecimento e o amor são recebidos apenas habitualmente, e por isso pertencem apenas à memória, como mostra Agostinho no livro XIV de De Trinitate. Diante deste quadro, a resolução de Tomás se estrutura de acordo com a seguinte concepção: é a memória uma potência distinta da inteligência. Caso concebamos a memória em seu sentido próprio, ou seja, enquanto tem por objeto o particular, ela pertence à parte sensitiva do homem. De alguma forma, a mente ou o intelecto pode conhecer o pretérito. Isso, no entanto, não altera o fato de que, para o inteligível, a diferença do presente e do pretérito é meramente acidental. Portanto, a memória existente na mente não pode ser uma potência diversa, mas é o próprio intelecto, em sua função de passivo, no momento em que se recolhem as espécies inteligíveis.

O refinamento de Tomás em relação à analogia agostiniana é essencial à estruturação de uma ciência da alma com características particulares. Apoiado em tais considerações acerca das relações entre memória e inteligência, Tomás pode, portanto, avançar para o problema do conhecimento das realidades materiais e sensíveis. Eis o problema que de imediato se coloca: por ser imaterial, a mente, em princípio, não poderia conhecer as realidades materiais nem mesmo enquanto imagens no intelecto. Impossibilitados estariam inclusive os mecanismos de conhecimento das imagens materiais por meio de imagens e formas que não são materiais. Tomás, porém, esclarece que o conhecimento da mente não consiste em uma apropriação direta das coisas materiais. Pelo contrário, todo conhecimento se faz pela forma, a mesma forma que, no sujeito cognoscente, é o princípio do conhecer. É a forma que faz com que o cognoscente conheça em ato. O conhecimento relativo ao cognoscível é determinado pela própria relação que tem com a realidade. É neste sentido que se diz que as realidades materiais podem ser conhecidas pelas mesmas formas que são recebidas pelo sujeito cognoscente. Como se explica esse processo? Pela ação das realidades sobre a alma, mediante a forma. O mecanismo tomasiano para justificar o conhecimento das realidades materiais e sensíveis pelas formas é precedido, mais uma vez, pela comparação do conhecimento humano com os conhecimentos angélico e divino, que também se fazem pela formas. O conhecimento humano das coisas materiais é também um conhecimento espiritual, na medida em que o intelecto tem acesso à essência das coisas, ainda que não seja um acesso direto, como no caso dos conhecimentos divino e angélico. O acesso é pelas “similitudes”, que não têm, enquanto tais, a mesma existência das coisas das quais são similitudes.

Se é possível o conhecimento das coisas materiais e sensíveis pela mente, resta também saber se as coisas materiais podem ser conhecidas singularmente. É sobre isso que trata o artigo V, o que insere sua ciência da alma no âmbito da gnosiologia que caracteriza todo o debate dos séculos XII e XIII sobre a questão dos universais. Ora, na medida em que o singular é o que de fato existe, e na medida em que o existente é o fundamento de toda verdade, é de se esperar que o conhecimento autêntico dê conta da realidade em sua singularidade. A este favor temos o princípio da individuação: se é a matéria que dá existência ao singular, e se a mente pode conhecer as coisas materiais, por consequência pode conhecer as coisas singulares (De mente, IV, §1). Se tomamos a mente por referência, o resultado é idêntico: o conhecimento da composição depende do conhecimento dos termos da composição. Se a mente forma a composição, isso se dá a partir dos singulares, e a potência sensitiva, que não conhece as coisas no universal, apreende, pois, as coisas singulares (De mente, IV, §3). Em inúmeras ocasiões, Tomás reitera que a mente tem acesso às coisas naturais primariamente segundo a forma, e secundariamente conhece a matéria na medida em que se refere à sua própria forma. Mas neste campo estamos no registro da universalidade, e a matéria não se concebe aí como princípio de individuação. Por isso tudo, a mente de fato não conhece o singular diretamente, mas apenas por acidente, de modo indireto, na mesma medida em que é corroborada pelas forças sensitivas, as quais, como sabemos, recebem as formas das coisas em um órgão corporal para assim chegarem ao conhecimento da matéria singular.

A mente não pode receber o conhecimento dos sensíveis, pela mesma razão que fica inviabilizada a concepção platônica segundo a qual as formas sensíveis são separadas e inteligíveis em ato. Retomando Aristóteles, Tomás se posiciona a favor da tese que as formas universais só podem ser contempladas, neste estado presente, em que estamos marcados pela união de corpo e alma, a partir da matéria sensível. É também conhecida a oposição de Tomás à posição de Avicena segundo a qual nossas mentes recebem as formas inteligíveis de inteligências separadas. Em primeiro lugar, a experiência indica o contrário do que pensava Avicena: quando um sentido é defeituoso, há total ausência de uma ciência correspondente. Por outro lado, a mente humana só é capaz de considerar em ato as coisas das quais tem conhecimento habitual, mediante assimilação de imagens correspondentes. Quando o órgão responsável pelo phantasmata fica prejudicado, a mente nada pode considerar nesse âmbito. Ademais, se recebêssemos as formas inteligíveis de inteligências separadas, receberíamos, em mesmo nível, tanto as formas inteligíveis quanto as sensíveis. Oposição semelhante recebe a posição platônica, segundo a qual conhecer é rememorar, já que a alma humana em si mesma contém o conhecimento de todas as coisas, independentemente do recurso aos sentidos e ao aprendizado (sobre isso, vale lembrar do exemplo do escravo no Mênon). Inviável é a concepção platônica na mesma medida em que, por exemplo, ignoramos tudo aquilo de que não temos sentido. Além disso, a ciência da alma de Tomás não pode admitir que a alma tenha sido criada antes do corpo e, por uma razão aleatória e arbitrária, unida a esse. Nesse caso, a composição substancial de corpo e alma no homem não seria natural.

Tomás, nesse momento, estabelece uma orientação filosófica que de fato será determinante para a ulterior irrupção dos conimbricenses, a saber: a alma como causa para si mesma. Trata-se da ideia segundo a qual a formação em si da similitude das coisas faz com que a mente permaneça autônoma para se dar as formas em ato, independente do recurso aos sensíveis. O recurso a Aristóteles nesse caso é justificável: a ciência é em parte de dentro e em parte de fora da mente. De fato, em relação às coisas sensíveis, a alma está em dupla relação: a) como o ato para potência, já que as coisas fora da alma estão em potência inteligíveis. Neste sentido, a mente é inteligível em ato e o intelecto agente torna os inteligíveis potenciais em inteligíveis em ato; b) como a potência para o ato, já que o intelecto possível recebe as formas (que estão em ato nas coisas), e que são tornadas inteligíveis em ato pela luz do intelecto agente. De fato, da mesma forma que a luz interior provém de Deus, a ciência da alma de Tomás supõe que a mente receba a ciência dos sensíveis, e de modo algum forma em si as similitudes das coisas: as coisas, abstraídas dos sensíveis, são, como é sabido, atuadas pela luz do intelecto agente: “E assim também no lume do intelecto agente é, em nós, de algum modo, posta originalmente toda ciência, mediante as concepções universais que imediatamente são conhecidas por aquele lume, pelas quais, como por princípios universais, julgamos outras coisas, e os reconhecemos nas mesmas” (De mente, VI).

Este artigo VII contempla de forma cabal a discussão sobre o conhecimento da mente, no exato sentido em que ata o início e o fim de certo nível da discussão, a saber: de que forma ou a partir de que objetos de conhecimento a mente mais realiza a imagem da Trindade? Em princípio, postula-se a ideia de que a imagem da Trindade está na alma simplesmente enquanto conhece, tanto as coisas materiais quanto as eternas. Sobre isso mais uma vez notamos a presença do livro X do De Trinitate, quando Agostinho considera que a igualdade das Pessoas é bem representada em nossa mente, ao considerarmos claramente a conjunção de memória, inteligência e vontade. Em verdade, qualquer nível do conhecimento de si evoca uma similitude da Trindade, no mesmo espírito em que Agostinho esclarece em De Trinitate, no livro XI. O reconhecimento da mente como imagem de Deus é, em Tomás, como em Agostinho, dependente em absoluto da mente que se conhece a si mesma. É o conhecimento de si a evidência mais primordial, da qual depende inclusive a teologia de Tomás. Do ponto de vista da teologia tomasiana, a perfeição maior do homem é adquirida no momento em que a mente conhece a Deus, já que na relação criador-criatura o homem se coloca em relação a Deus em situação de correspondência, e não de analogia. E, como sabemos, em Tomás é mais perfeito o conhecimento por conformidade que por analogia. Neste sentido, se, enquanto criatura, nossa mente está mais próxima das realidades temporais, por intermédio do conhecimento de si e, mais ainda, por meio do conhecimento de Deus, mais próximos estamos do conhecimento e amor de Deus do que das coisas temporais.

Podemos, enfim, tocar no ponto nevrálgico do problema: o autoconhecimento da mente, ou ainda a possibilidade de conhecer-se por essência, questão que sem dúvida justifica as pretensões de Tomás quanto à hipótese de construção efetiva de uma ciência da alma. O artigo VIII, provavelmente o mais complexo da questão X, se propõe dar conta da seguinte indagação: se a mente conhece-se a si mesma por essência ou por outra espécie. Em outros termos: a mente humana conhece-se a si mesma imediatamente e sem nenhuma representação, ou depende uma espécie abstraída das coisas para se conhecer? Enfim, é possível à mente olhar-se, intuir-se, ter uma autoconsciência, a ponto de não apenas saber que existe, mas que é? Existem razões favoráveis à ideia de que existe alguma espécie mediadora para o autoconhecimento da mente. Dentre estas, podemos citar a de Aristóteles, para quem o intelecto nada entende sem imagem e não pode ter da própria essência uma imagem (De mente, VIII, §1). Este argumento encontra fortes razões se considerarmos a alma como uma forma unida à matéria, sendo, ademais, que toda forma desse tipo se conhece por abstração da matéria, inclusive a alma (De mente, VIII, §4). É nesse sentido que, com grande proficiência, Aristóteles diz, em De anima, que entender é ato não apenas da alma, e supõe sempre algo do corpo. Depreende-se daí que não pode a alma se ver a si mesma por essência, sem espécie alguma que dos sentidos do corpo tivesse recebida (De mente, VIII, §5). No entanto, é também verdade que, em relação a si, a mente tem o conhecimento habitual, mediante o qual percebe que existe, ainda que possa não conhecer sua natureza. A mente sabe que existe, e esse conhecimento pode ser em ato ou em hábito. Em ato, é quando a alma se conhece por seus atos: ela percebe que se entende na medida em que entende algo. Em hábito, a alma se vê por essência na medida em que sua essência está presente a si, podendo passar ao ato de conhecimento de si mesma. Da presença na mente da essência da alma saem os atos nos quais a mesma se percebe atualmente.

Quanto ao conhecimento da própria natureza da alma, existe o mecanismo da apreensão e o mecanismo do juízo. Trata-se de dois instantes fundamentais de todo conhecimento. Pela apreensão, nossa mente se entende, não imediatamente, mas apreendendo as outras coisas, ou seja, pelas espécies abstraídas dos sentidos. Se nossa alma está, como já intuíra Agostinho, no último lugar entre as realidades espirituais, e conhece as naturezas universais das coisas apenas porque é imaterial, o intelecto é independente da matéria, é “inteligível como os outros inteligíveis”, para usarmos a expressão de Aristóteles. Pelo juízo, porém, nossa mente é capaz de apreender a “inviolável verdade”, e atinge o conhecimento de como deve ser a mente de cada homem, por razões sempiternas. Neste artigo, quatro proposições de Tomás são extremamente esclarecedoras, a saber: a) se trata de conhecimento atual, a alma é conhecida por seus atos. Alguém percebe que tem alma, que vive e existe, quando percebe que sente e entende, e exerce outras funções semelhantes da vida. Ninguém percebe que se entende senão na medida em que entende algo; b) se trata do conhecimento habitual, a alma se vê por essência na medida em que sua essência está presente a si, podendo passar ao ato de conhecimento de si mesma. Para que a alma perceba que existe e atenda ao que faz em si mesma, não se requer um hábito, mas basta a essência dela, que é presente à mente: dela saem os atos nos quais a mesma se percebe atualmente; c) quanto à sua natureza, a mente se apreende, não imediatamente, mas através das espécies que são abstraídas dos sentidos; d) para saber o que deve ser, seu juízo se constituirá a partir da intuição daquilo que nela habita como “inviolável verdade”, “pelas razões sempiternas”.

A mente se conhece a si mesma também porque é incorpórea: para conhecer-se que existe, basta que seja capaz de refletir sobre seu próprio ato. Se lembrarmos da significação que a tradição emprega aos argumentos cartesianos acerca da indubitabilidade do conhecimento de si a partir do fato de que somos capazes de refletir sobre nossos próprios pensamentos, torna-se ainda mais indiscutível a significação do pensamento tomasiano. Por outro lado, para conhecer o que é, em si mesma, é necessário que considere seu objeto. A mente é de fato inteligível em si mesma, razão pela qual não é princípio de autocognoscibilidade. Não há a hipótese de pensarmos a mente, inteligível em si mesma, conhecendo-se a si por uma intuição fundamental de si mesma ou por uma espécie abstraída de si. Antes, devemos pensá-la pela espécie abstraída de seu objeto, que se torna “forma” na mente enquanto entende em ato.

Referências
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complementares de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1994.
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CERQUEIRA, Luiz Alberto. Filosofia Brasileira: Ontogênese da consciência de si. Petrópolis-RJ: Vozes; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2002.
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TOMÁS DE AQUINO. Sobre a mente, na qual está a imagem da Trindade (Questões Discutidas sobre a Verdade, X). Introdução, tradução e notas de Maurílio Camello. Lorena-SP: UNISAL - Centro Universitário Salesiano de São Paulo, U. E. Lorena, 2001.
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______. Compêndio de Teologia. Tradução, introdução e notas de D. Odilão Moura, OSB. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996. (filosofia).
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